segunda-feira, 29 de março de 2010

O Império Otomano no imaginário europeu







Imagem 1: Tela de Paul Trouillebert (1874) retratando uma serva do harém otomano


A Turquia é uma economia dinâmica e abriga vários dos homens mais ricos da Europa. Istambul é uma cidade cosmopolita que além da sua beleza fantástica, possui habitantes extremamente acolhedores e divertidos. Suas avenidas lembram São Paulo, mas um leve desvio de olhar em direção ao Bósforo ou para qualquer um dos seus monumentos, fazem-nos perceber que estamos em um lugar único.

Sua entrada para a UE foi tratada com cautela por boa parte da população europeia. Isto devia-se à desconfiança em relação à economia turca, ao provável fluxo de milhares de imigrantes turcos para a Europa ocidental, e pela perda do protagonismo político dos seculares. Hoje, a crise do Euro, o aquecimento da economia turca e seu crescente interesse no Oriente Médio e no norte da África, fizeram com que as prioridades políticas e econômicas do país fossem alteradas.

O receio de alguns ocidentais em relação à Turquia tem raízes no imaginário europeu em relação aos otomanos. Esta imagem foi formada ao longo dos séculos de contato e de convivência entre as duas partes, oscilando de acordo com os períodos de protagonismo ou declínio otomano.


Imagem 2: O Império Otomano (1359-1856)
Fonte: http://www.kaankahraman.com/turkiye/Ottoman_Empire_Map_1359-1856.jpg



Os otomanos eram aqueles que estavam mais próximos dos Estados europeus do ocidente, esta proximidade teve um profundo efeito na formação da identidade tanto dos otomanos como dos europeus, do mesmo modo que estruturou um complexo processo de atração e de afastamento. "A autoconsciência de um povo, da sua diferença e autonomia, das suas características particulares e singulares, nasce muitas vezes da comparação com o "outro" como forma de se autodefinir em termos daquilo que é, ou não é". Nos seus confrontos com Bizâncio, com os Estados dos Balcãs, e com a Europa ocidental e oriental, os otomanos enfatizaram por vezes sua identidade como guerreiros muçulmanos da fé. Isso não impediu que seus líderes admirassem e recorressem à soldados, artistas e técnicos bizantinos, búlgaros, sérvios e europeus ocidentais.

Para os europeus, os otomanos foram um meio fundamental de autodefinição da cultura europeia enquanto tal. Houve momentos em que serviram como modelo de qualidades que os europeus desejavam ter. Maquiavel e outros intelectuais europeus, como Bodin e Montesquieu, enalteceram a integridade, a disciplina e a obediência dos exércitos e dos governantes otomanos. Numa época em que a crítica direta ao rei podia ser perigosa, utilizavam os otomanos como exemplo inspirador para melhorar a conduta dos monarcas, exércitos e estadistas europeus. Entretanto, quando os europeus procuravam se definir, caracterizaram-se segundo aquilo que não eram.


Em algumas oportunidades os europeus fizeram dos otomanos o repositório do mal; identificaram as características que queriam possuir, atribuindo as contrárias ao seu inimigo. Para os europeus, os otomanos ora eram terríveis, selvagens e "vís", ora eram tarados sexuais, devassos e dissolutos. Segundo Quataert "até mesmo no século XIX, a imaginação europeia rotulava o "Oriente Otomano" como antro de degenerada perdição dos prazeres pretensiosamente ausentes ou proibidos no salutar e civilizado Ocidente."


Imagem 3: Miniatura Otomana "Cerco de Viena"
Fonte: http://yrakha.wordpress.com/2009/01/08/strangers-in-the-house/




A maioria dos europeus ocidentais e dos americanos talvez não reconhecem que devem aos otomanos, por exemplo, o apreciado café e a tulipa, ou a vacina da varíola que protege a nossa saúde. Desde seus primórdios, o Império Otomano influenciou o cotidiano, a religião e a política daquilo que a Europa veio a ser.

Donald Quataert,  um dos principais estudiosos do Império Otomano, ficou perplexo quando esteve na Aústria para visitar uma exposição que festejava o tricentésimo aniversário do Segundo Cerco de Viena (1683). O que assustou o historiador foi a ideia amplamente difundida entre crianças e professores (bem como os europeus em geral) de que a data marcaria a ocasião em que todos foram salvos da conquista otomana. Mas a verdade era que Viena não seria arrasada por uma força destruidora muçulmana, mas sim conquistada e incorporada à um Império multiétinico e multireligioso. Na ocasião do Cerco de Viena, o poder imperial otomano apoiava-se em uma mescla de povos que seria a causa dos seus quase seis séculos de coesão interna.


O Império Otomano teve um importante papel nos conflitos religiosos europeus. No período da Reforma, os otomanos foram considerados o verdadeiro castigo de Deus na Terra. Os anabatistas, reformadores radicais, sustentavam que os otomanos eram um sinal de que Deus estava prestes a conquistar o mundo, após a vinda do Anticristo. Martinho Lutero, por sua vez, escreveu que os otomanos eram um flagelo de Deus, um instrumento da ira divina pelo papado corrupto. Os católicos consideravam que os "turcos" eram a punição de Deus pelo êxito de Lutero e seus seguidores.


Os otomanos estão presentes na cultura popular europeia. No século XVII, a temática da literatura ficcional francesa incluía os monarcas otomanos - como por exemplo, a história do cativeiro do sultão Beyazit I (1389-1402) e do seu captor Timur (Tamerlão), publicada em 1648. Porém, a maioria das narrativas relatava a crueldade dos turcos, tal como a de Suleyman, o Magnífico, em relação ao seu favorito, o grão-vizir Ibrahim. Numa peça francesa de 1612, Mehmet, o Conquistador, que fora um príncipe renascentista cosmopolita, requintado e conhecedor de várias línguas, transformou-se em um brutal e cruel tirano cuja mãe era retratada bebendo o sangue de uma vítima. Em outros relatos igualmente bizarros representavam-se os soldados otomanos oferecendo sacrifícios à Marte, o deus romano da guerra. Todavia, o afastamento da ameaça otomana após o fracasso de Viena em 1683, alterou essa imagem.


Os habitantes de toda Europa começaram a copiar aberta e intensamente seus vizinhos. Nesse período, os otomanos contribuíram notavelmente no âmbito da música clássica europeia, introduzindo os instrumentos de percussão nas orquestras modernas. De 1720 até meados do século XIX, a chamada "música turca" tornou-se a grande voga na Europa. Esta música surgira com a Banda dos Janízaros, que acompanhava os exércitos otomanos a fim de incitar as tropas e inspirar temor aos inimigos. O rei polaco Augusto II (1697-1733) admirava tanto a música janízara que um sultão o presenteou com uma banda. Em 1727, a imperatriz Ana da Rússia decidiu que também necessitava de uma banda, mandando vir de Istambul um grupo idêntico. Em 1782, Londres obteve a sua banda mas neste caso os tambores, as pandeiretas e os címbalos eram tocados por africanos, talvez para criar uma atmosfera de exotismo. Um resquício deste entusiasmo pelas bandas janízaras é a tradição de os tamboreiros-mor lançarem ao ar as suas baquetas. Nos EUA, esta prática evoluiu para o bastão das majorettes.


Imagem 4: Apresentação da banda dos Janízaros em frente ao Dolmabahçe Sarayı (Istanbul)
Fonte: Diogo Farias



A popularidade dos sons janízaros deixou de se confinar à banda, entrando na corrente dominante daquilo a que hoje chamamos música ocidental. A influência janízara pode ser sentida na Nona Sinfonia de Beethoven, na Quarta Sinfonia de Brahms, na Sinfonia Marcial de Haydn; na abertura do Guilherme Tell de Rossini, ou na marcha de Wagner, Tannhäuser. A Sonata K. 331 para piano em lá maior, de Mozart, contém uma rondo alla turca, um tema que também influenciou o jazz americano. Em 1686, uma ópera produzida em Hamburgo, contava o destino do grão-vizir Kara Mustafa Paşa após o cerco de Viena. A ópera de Händel, Tamerlano (1724), relata a derrota do sultão Beyazit I para Timur, o Coxo.

No século XVIII, a "moda turca" também influenciava a Europa ocidental. Surgiam por toda a parte pseudo-sultões e sultanas. Os cafés ao estilo otomano enchiam-se de frequentadores vestidos à maneira turca, estes fumavam cachimbos d'água e comiam doces "turcos".

Imagem 5: Tela de Jean-León Gérôme (1824-1904)
Fonte: http://rubell.wordpress.com/2009/02/13/my-problematical-artifact/



No século XIX, esta "turcomania" foi lentamente substituída. Manteve-se a temática comum da crueldade, da intriga, do ciúme e da barbárie. Paralelamente à velha imagem desumana surgia a do turco apaixonado ou histriônico. A figura do turco tolo já se tornara corriqueira. No século XIX, o turco libidinoso e de orgãos sexuais desproporcionados tornara-se uma característica importante da literatura pornográfica vitoriana. Muitos europeus, como Lord Byron e o romancista Pierre Loti, passaram a considerar o Império Otomano a terra dos sonhos, onde os devaneios sexuais ou de outra natureza podiam tornar-se realidade. Procurava-se no Oriente idealizado um refúgio para o tédio e para a monotonia da vida industrial moderna, como pode ser conferido no poema "The Island" de Lord Byron, no final deste post.

Graças aos artefatos otomanos exibidos em várias feiras mundiais do século XIX, incluindo a Exposição Centenária Americana de 1876, o "recanto turco" tornou-se um lugar-comum nos lares europeus. Nas salas de estar das classes mais abastadas havia cadeirões almofadados ornamentados com borlas e longas franjas, junto aos quais se viam bandejas de cobre e os sempre presentes tapetes "orientais".

Os otomanos enriqueceram o imaginário europeu. Em sua fase de retração militar, o anticristo e inimigo da Reforma deu lugar a formas mais inofensivas. Até mesmo nos nossos dias, embora o Império Otomano tenha desaparecido, as suas heranças permanecem no mundo cultural europeu e nas suas ramificações.






Imagem 6: jovem turca num bar nas mediações da Istiklâl Caddesi
Fonte: Diogo Farias

Imagem 7: grupo de mulheres muçulmanas saindo da Mesquita Suleymaniye (Suleymaniye Camii)
Fonte: Diogo Farias


Podemos discutir como a visão "ocidental" em relação aos "turcos" e aos povos árabes variou de acordo com as circunstâncias de cada época. A imagem romântica vulgarizou o "Oriente" como uma terra onde era possível realizar todos os prazeres da imaginação humana. Essa visão do mundo "oriental" popularizou a imagem da odalisca como estereótipo da mulher muçulmana até pouco tempo atrás, enquanto após o atentado ao World Trade Center fomos bombardeados por imagens de muçulmanas usando o hijab (véu), chador, niqab e a burqa. Na prática, ambas as visões falham ao caracterizar a sociedade islâmica e a condição da mulher no Islã.

É perceptível as diferenças de conduta em cada país ou até mesmo em cada cidade; a Turquia e o Líbano são exemplos de sociedades mais abertas, enquanto o Iêmen e o Afeganistão são mais rígidos. Istanbul é um exemplo da diversidade no Islã, nos bairros históricos, como Eminönü, é comum encontrar as mulheres usando o hijab e até o chador, em contrapartida, é frequente ver turcos tomando cerveja EFE (a principal marca de cerveja da Turquia) nos diversos bares das ruas adjacentes à Istiklâl Caddesi, ou jovens "ficando" em clubes noturnos como o Reina. Esta diversidade é um legado do histórico cosmopolita da cidade, da visão heterodoxa do Islã comum aos povos nômades e da política secular nacionalista de Kemal Atatürk. Se ao longo dos séculos formou-se um imaginário que não traduz corretamente a sociedade turca, cabe a nós historiadores reconhecermos os defeitos desta visão, refletir sobre o passado e compreender os dilemas atuais.







The Island
Lord Byron

But here the herald of the self-same mouth [60]
Came breathing o’er the aromatic south,
Not like a “bed of violets” on the gale,
But such as wafts its cloud o’er grog or ale,
Borne from a short frail pipe, which yet had blown
Its gentle odours over either zone,
And, puffed where’er winds rise or waters roll,
Had wafted smoke from Portsmouth to the Pole,
Opposed its vapour as the lightning dashed,
And reeked, ‘midst mountain-billows, unabashed,
To AEolus a constant sacrifice,
Through every change of all the varying skies.
And what was he who bore it?–I may err,
But deem him sailor or philosopher.[61]
Sublime Tobacco! which from East to West
Cheers the tar’s labour or the Turkman’s rest;
Which on the Moslem’s ottoman divides
His hours, and rivals opium and his brides;
Magnificent in Stamboul, but less grand,
Though not less loved, in Wapping or the Strand;
Divine in hookas, glorious in a pipe,
When tipped with amber, mellow, rich, and ripe;
Like other charmers, wooing the caress,
More dazzlingly when daring in full dress;
Yet thy true lovers more admire by far
Thy naked beauties–Give me a cigar!

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