quarta-feira, 24 de março de 2010

O Google e o autoritarismo chinês



Ontem, o site google.cn deixou de existir e seus usuários passaram a ser redirecionados para o google.com.hk, com sede em Hong Kong. Apesar da nova roupagem, as restrições de acesso às informações continuaram a ser as mesmas. Essas restrições se aplicam a outros sites de busca, mas é importante deixar claro que a busca e o acesso à conteúdos proibidos pelo PCC é possível através de ferramentas que "driblam" a censura. O fim do google.cn é extremamente prejudicial para as relações públicas chinesas e o futuro desta companhia na China é incerto.

Muitas pessoas confundem que o autoritarismo, a censura e as restrições a informação foram implantadas pelo Partido Comunista Chinês, porém a China tem uma longa tradição neste campo, que remonta as suas matrizes civilizacionais. Todo tipo de influência estrangeira que chegou a China passa por um processo de "sinenização", ou seja, uma adequação ao pensamento e as estruturas sociais da China. O Budismo, o Islã, o Cristianismo e também o Marxismo passaram por este processo. Desta forma o Marxismo encontrou na China uma longa tradição autoritária, compatível com o autoritarismo existente em sua própria doutrina. Basta ver o caso de Taiwan e o Kuomintang para perceber como o Estado forte e centralizado é uma característica da cultura chinesa.

As origens do autoritarismo:

O modelo do absolutismo chinês pode ser identificado no período Shang, entre as principais fontes do poder imperial destacam-se:
  1. o domínio da elite sobre as técnicas da metalurgia, para construção de armas e carroças, ou seja, o monopólio da violência;
  2. o modelo da família chinesa, uma espécie de Estado em miniatura. A devoção e a obediência dos filhos, propiciaram a formação da lealdade para com o governante e a obediência para com a autoridade constituída no Estado ;
  3. a necessidade dos chineses defenderem o seu território de razias realizadas por tribos nômades, sendo a Grande Muralha o seu exemplo máximo- vale lembrar que a primeira Grande Muralha foi construída durante a dinastia Qin (221-206 a.C.), aproveitando as muralhas já existentes;
  4. a organização do trabalho cooperativo para manter o Rio Amarelo (Huang He) em seu leito e promover a irrigação das terras férteis. O Mito de Yu conta que, o fundador da dinastia Xia, controlou as enchentes do Rio amarelo e liderou o aparecimento do primeiro estado centralizado da história da China.

Com a conquista da dinastia Shang pelos Zhou, o Estado chinês finalmente emergiu.Os Zhou criaram uma nova base de legitimidade por meio da adesão à teoria do Mandato Celestial.Segundo Fairbanks, "enquanto os governantes Shang veneravam e procuraram a orientação de seus ancestrais, os Zhou reinvidicaram que sua permissão para governar vinha de uma deidade mais ampla, impessoal, o Céu (tian), cujo mandato (tianming) poderia ser conferido a qualquer família moralmente capaz de assumir a responsabilidade. Essa doutrina asseverava que o governante devia prestar contas a uma força moral suprema que guia a comunidade humana. A teoria chinesa do Mandato Celestial estabelecia critérios morais para a manutenção do poder."

Durante o período Primavera e Outono (722-481 a.C.) o poder dos Zhou foi minado pelo crescimento de diversos estados familiares aristocráticos fora do seu controle central. Esses estados formavam alianças e ligas e travavam um conflito diplomático militar, um absorvendo o outro. No Período dos Reinos Combatentes (403-221 a.C.), existiam somente sete grandes estados. Segundo Mark Edward Lewis, a autoridade do rei de cada estado baseava-se em "violência ritual direcionada na forma de sacrifícios, guerras e caça."

A queima dos livros:

No final do Período dos Reinos Combatentes, os governantes do Reino de Qin recrutavam conselheiros, estrategistas e diplomatas de outros estados rivais. Em 221 a.C., os Qin conquistaram seus adversários, reunificando a China. O Reino de Qin foi influenciado por letrados legalistas, que defendiam que um governo forte não dependia somente das qualidades morais do governante e de seus funcionários, mas no estabelecimento de estruturas institucionais efetivas. Estes pensadores não tinham interesse pela cosmologia e pela ética, concentravam-se em propostas para soluções políticas para a desordem e técnicas para acumulação de poder. Para os legalistas as leis eram decretadas para agir de acordo aos interesses do Estado.

Imagem: Estátua de Qin Shi Huangdi em Xi`an (China)
Fonte: Diogo Farias

O sistema legalista Qin tinha uma terrível eficácia, toda sua população era dividida em grupos de cinco ou dez famílias, onde cada membro era responsável pelo comportamento do outro. O crime cometido por uma pessoa levava a condenação de todo o grupo e suas punições eram severas: decapitações, morte na fogueira, desmembramento do corpo com o auxílio de cavalos e a castração. Este é um exemplo clássico do controle da sociedade pelo Estado, demonstrando que o comportamento de uma pessoa pode afetar todo um grupo. O Reino de Qin concentrava-se nas leis executivas para apoiar a agricultura e fortalecer o Estado em vez da família, assim os laços e lealdades intergrupais eram deteriorados em prol da obediência ao Estado. É importante ressaltar, que o legalismo perdeu seu espaço de ideologia oficial do Estado para o confucionismo, durante a dinastia Han.

Muitas das ações de Qin Shi Huangdi (247-210 a.C.) foram inspiradas pelo seu primeiro ministro Li Si (280-208 a.C.), que persuadiu o Imperador a abolir o sistema feudal, que segundo ele era a maior fonte de corrupção. O fim da aristocracia feudal provocou um famoso episódio. Segundo Sterling Seagrave em um banquete em 213 a.C., "a elite letrada queria desejar ao Primeiro Imperador "uma vida longa", mas um confuciano afirmou que o novo Império não teria sucesso se o Imperador falhasse na restauração dos privilégios hereditários das famílias nobres." Esta atitude irritou Li Si, que acusou os letrados de "estudar o passado para criticar o presente", com o objetivo de agitar o povo contra o Império. Para eliminar este tipo de provocação, Lisi ordenou que todos os livros deveriam ser queimados, exceto os pertencentes à biblioteca real. Todos que não cumprissem a medida seriam presos, tatuados na face como criminosos e pagariam suas penas através de trabalhos forçados. Toda pessoa que fosse pega lendo um livro proibido seria decapitada junto com seus familiares.

Esta não foi a única vez que livros foram banidos, queimados ou re-escritos. Muitos Imperadores perceberam que livros poderiam ser re-escritos para se adequarem ao seu regime político. Os alvos não eram os livros, mas sim os letrados que os utilizavam para criticar o regime. A proibição dos livros foi responsável pela fama de tirano que até hoje ostenta Qin Shi Huangdi, esta imagem foi difundida por Sima Qian (135 ou 145-86 d.C.), um historiador que trabalhou a serviço da Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.). O relato de Sima Qian demonstrou a importância do controle do material escrito e da história para a legitimação do Mandato Celeste dos Han, justificado através do governo tirânico e perverso de Qin Shi Huangdi. Devido ao seu excesso de violência e autoritarismo a dinastia Qin não teve uma vida longa, foram apenas 15 anos, até uma grande revolta popular destituí-los do poder.

A atitude de Li Si e de Qin Shi Huangdi influênciou o pensamento político chinês, trata-se de uma comprovação de que o autoritarismo e o controle sobre a população estão enraizados na cultura política chinesa. Houveram outros importantes casos de autoritarismo e controle de informação na história da China, posteriormente esperamos escrever sobre eles, entre os mais famosos estão:
  1. o governo de Hongwu (1328-1398);
  2. a proibição de viagens, contatos e comércio com o exterior, iniciado durante a dinastia Ming;
  3. o Censorato, instituição criada pelos Ming, para controlar as atividades de seus funcionários públicos;
  4. as leis de controle da população han da Dinastia Qing (1644-1911).

O caso do google.cn é mais uma demonstração de autoritarismo da elite do partido comunista, que segue uma longa tradição de controle da informação acessível aos seus cidadãos. Em curto prazo, este caso não afetará o poder do PCC na China, mas esta é uma prova de que suas contradições são perigosas para legitimação do partido.


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