quinta-feira, 4 de março de 2010

Ibn Battuta e a Rihla: uma fonte de conhecimento sobre o século XIV.




Como prometido este post será sobre o viajante tangerino Ibn Battuta, o padrinho deste blog. Ibn Battuta, nasceu em Tânger em 1304, e em 1325 partiu em direção à Meca com o intuito de cumprir sua peregrinação à esta cidade santa para o Islã. Ele cruzou o al-Andalus, Norte da África, Mali, Oriente Médio, Império Bizantino, Irã, Ásia Central, Índia, Ilhas Maldivas e talvez Malásia, Sumatra e China. Ibn Battuta é considerado como o Marco Polo do Mundo Islâmico. Morreu no seu país natal entre 1368 e 1377.

Ibn Battuta ficou famoso pelo relato de suas viagens, chamado de Rihla (do árabe viagem). Entretanto rihla também caracteriza um estilo de relato de viagem que surgiu no século XII, através dos “árabes ocidentais”: andaluzes e marroquinos. Convém lembrar que obras geográficas eram há séculos produzidas pelos árabes. Esses viajantes tinham como objetivo peregrinar para Meca e estudar em grandes centros da cultura islâmica como Cairo, Bagdá, Damasco, etc. O primeiro relato ao estilo rihla foi do granadino Abu Hamid (1080-1169), que visitou o Norte da Africa, Síria, Iraque, Pérsia, Transoxiana e toda região sul e central da Rússia.

Ibn Battuta partiu de Tânger em 1325, para comprir a peregrinação prescrita pelo Islã. A partir desta data foram cerca de trinta anos de viagens. Quando voltou ao Império Merínida em 1354, Ibn Battuta relatou suas experiências à Ibn Juzayy, o compilador de suas memórias. Seu objetivo era proporcionar ao Sultão Abu Inan informações difíceis de adquirir na época.

A Rihla é antes de tudo um relato de viagens: um livro que pretende informar sobre tudo o que foi visto e vivido. Há dados históricos, políticos, sociais, de cultura em geral e economia. Há informações de primeira ou de segunda mão, transmitidas à Ibn Juzayy oralmente sem uma nota escrita. O que ocasionou inevitáveis falhas de memória, reajustes de recordações e itinerários, com objetivo de adaptá-los à uma estrutura linear da narração.

Qual era o quadro político do período em que viveu Ibn Battuta?

Ao sair do Império Merínida (atual Marrocos) cruzou o Norte da África em direção ao Egito. Nesta época a primeira dinastia mameluca, a Bahri (1250-1382), mantinha o poder sobre o Egito, Palestina, Líbano, Síria e Jordânia, mantendo a custódia dos Lugares Santos do Islã (teoricamente autônomos). Os mamelucos (do árabe Mamluk) eram antigos escravos militares de origem transoxiana ou circassiana, que ascenderam ao poder particularmente no Egito entre 1250 e1516.

Nos territórios a leste da Síria e norte da Arábia, a situação era crítica, por causa da queda do Califado Abássida em 1258, com a tomada de Bagdá por Hulagu, neto de Genghis Khan. Os Il-Khanidas encontravam dificuldades e abandonaram a pretensão de consquistar o Egito frente à vitória mameluca em Ayn Yalut (1260). A invasão mongol foi realizada por uma horda organizada para guerra, cujas intenções de permanência e imposição do domínio político eram claras. Esta época marcou o início do declínio de Bagdá, que deixou de ser o centro político e transformou-se numa cidade de segunda ordem. A instalação de novas tribos turcas provocou desequilíbrios na população, gerando um aumento do nomadismo e da desertificação de terras; causadas pela necessidade de pastos para manter a cavalaria do exército mongol. Paralelamente foi verificado um retrocesso da vida urbana da região.

O período de Mahmud Ghazan (1295-1304) foi uma tentativa de criar um governo eficiente, mas sua atitude foi insuficiente. Posteriormente, as provícias de Fars, de Kirman (ambas no atual Irã) e os sultões turcos da Anatólia tornaram-se autônomos. Com a morte do Sultão Abu Said (1335) o Khanato desmantelou-se e o Iraque conheceria (no século XV) seu momento de decadência máxima com o saque de Bagdá por Timur, o Coxo/Tamerlão (1336-1405).

Nesta época o Norte e o Centro da Índia estavam sob domínio de conquistadores muçulmanos. O Sultanato de Delhi foi estabelecido em 1175, quando um líder turco vindo do Afeganistão, Muhammad de Ghuri, derrotou a liga dos rajputes (príncipes hindus). A elite muçulmana beneficiava-se da extração de tributos, entretanto estes sultanatos necessitavam da importação de novos imigrantes muçulmanos para fortalecer sua própria estrutura administrativa, frente à uma população hostil de maioria hindu.

Ibn Battuta ilustrou muito bem esta situação, pois ele mesmo foi nomeado qadi (juiz ou magistrado que aplica a shari'a), em Delhi. Os Sultões de Delhi mantiveram-se no poder até o fim do século XV. Na década de 1340, o sultanato chegou a sua maior extensão sob Muhammad Ibn Tughlug, quando este controlou totalmente a parte setentrional do subcontinente indiano. Secessões criaram em seguida novos reinos independentes. O saque de Delhi por Timur, em 1398, quebrou a espinha dorsal do sultanato, ainda que este sobrevivesse, na forma de uma fraca restauração, por mais um século.

Não podemos esquecer do al-Andalus (na Península Ibérica), reduzido às atuais províncias de Málaga, Granada e parte das de Cádiz, Almería e Jaén. Estas terras estavam submetidas à pressão latente da Reconquista Cristã e de corsários. Esta situação instável favoreceu o intervencionismo do Estado Merínida no Estreito de Gibraltar. Ibn Battuta atravessou o Império Mali e conheceu Timbuktu (Tombuctu) uma cidade que controlava as rotas do sal e do ouro na África.

Ibn Battuta viveu num período onde os cristãos (catalães, venezianos, genoveses, etc) estavam adquirindo hegemonia sobre o comércio no Mar Mediterrâneo. O próprio Ibn Battuta viajou entre países do mundo islâmico em navios pertencentes a cristãos. Este fenômeno de predomínio comercial é contraposto pelo o fracasso político que foram as Cruzadas para a Europa, durante o século anterior. Ibn Battuta foi testemunho direto de uma das maiores convulsões do período medieval: a Peste Negra de 1348, que alcançou a Síria e cujos efeitos catastróficos descreveu minuciosamente.

A dinastia Yuan (1271-1368), de origem mongol, governava a China. Durante o século XIV, esta dinastia vivia seu auge, fazendo com que a China experimentasse várias décadas de paz interna e trouxe-lhe um intenso comércio de caravanas através da Ásia. Há uma teoria que afirma que a peste bubônica foi transmitida em direção ao ocidente pelos canais mongóis. As grandes obras públicas, como o sistema do Segundo Grande Canal, contribuiram para um certo grau de prosperidade econômica. O comércio marítimo da Ásia Ocidental e da Índia ainda estava amplamente nas mãos dos árabes, porque a diáspora islâmica tinha trazido mercadores muçulmanos não somente pela Rota da Seda, mas também através da Rota das Especiarias.

Ibn Battuta chegou a viver nas Ilhas Maldivas, aliás seu relato é um dos primeiros feitos por um árabe na região. Sua experiência nestas ilhas do Índico rendeu histórias curiosas em relação ao vestuário da população e sua visão heterodoxa do Islã. O tangerino não conseguia compreender como a parte da população aderiu o Islã e continuavam a andar seminús.

Como Ibn Battuta garantia a sua subsistência durante as viagens?

Para sua subsistência Ibn Battuta recorria a dispositivos sociais e econômicos presentes no mundo árabe/muçulmano. O tangerino buscou na hospitalidade dos povos pastores seu meio de sobrevivência. A tradição de hospedar o forasteiro teve origem na solidariedade de grupo frente a meios naturais hostis, com pouca água, pasto ou comida. Esta prática herdada pelo Islã fez com que fosse construída uma rede de conventos, caravansarais (caravanserai), albergues, alojamentos, etc. Eram mantidos com fundos públicos ou doações e sustentavam viajantes, faquires e pobres. Seu fundamento ideológico era a irmandade entre os praticantes do Islã.

Em numerosas situações Ibn Battuta recorreu a hospitalidade generosa de homens abastados, funcionários públicos e das confrarias de ajiyya, verdadeiras sociedades gastronômicas para o recebimento gratuito de forasteiros. Muitos membros da elite acudiram Ibn Battuta oferecendo-lhe moradia, meios de subsistência e contatos em seus próximos destinos. Em sua passagem por pequenas aldeias, o viajante contou com a hospitalidade de famílias humildes.

As informações econômicas na Rihla.

A preocupação com o preço das mercadorias é uma característica presente nos relatos de Ibn Battuta. Foi dada maior atenção à mercadorias de consumo imediato, como produtos agrícolas. Esta característica comprova a utilização comercial de obras geográficas e relatos de viagem. O autor ilustrou muito bem os produtos principais de cada região como: os tecidos finos do Líbano, melões de Khuwarezm (no atual Uzbequistão), seda e porcelana chinesa, cavalos do Turquestão, escravos hindus, a fabricação de sabão no Líbano, as técnicas de cerâmica ou funcionamento da pesca de pérolas no Golfo Pérsico, etc.

Ibn Battuta e o Islã.

Outro tema de extrema importância na narrativa da rihla é a religião. Há diversos relatos de visitas a sepulcros, hospitais, alojamentos, madrassas, mesquitas e mausoléus. Ibn Battuta preocupava-se com o cumprimento das orações e da leitura do Alcorão. O tangerino relatou histórias incríveis, principalmente na Palestina, Iraque e Síria, talvez motivado pela presença de religiões e lendas antigas nesta região, fonte de mitos e doutrinas antigas.

O estudo e difusão das ciências islâmicas foi outra das preocupações do tangerino. Pelas páginas da rihla encontram-se diversas menções a madraças. Como a celebre al-Mustansiriyya de Bagdá, que reúne as quatro escolas ortodoxas do Islã.

O aspecto mais chamativo em suas menções religiosas é talvez em relação à Shi'a (xiismo) e aos shi'i (xiitas). Ibn Battuta não ocultou sua antipatia à esta vertente do Islã, por ele considerada herege. Suas principais críticas residem: ao culto da personalidade, que para ele poderia degenerar na deificação de Ali.

Formas de poder.

Em seu relato, Ibn Battuta descreve de forma exaustiva a organização do poder, da administração e da burocracia, cuja utilidade para os governantes merínidas não deixa de ser evidente. Sobre o Império Mameluco, há um testemunho do uso de vistos no Cairo para viajar à Síria e vice-versa e de postos aduaneiros no Sinai, vigiados por patrulhas de beduínos. Na Índia, descreveu uma perfeita trama de espiões à serviço do sultão, constituída por informantes profissionais, serventes e escravos. Adicionalmente prestou muita importância as instituições sociais chinesas de auxílio a doentes, idosos, viúvas e órfãos; sobre a alforria de escravos e a jubilação de assalariados aos 50 anos. Proporcionou dados sobre a proteção dos comerciantes e a cômoda segurança das rotas comerciais sob o controle do Império Mongol na China.

Ibn Battuta relatou, aparentemente em primeira mão, alguns fatos históricos. Um deles aconteceu depois de sua segunda passagem por Meca, em 1330, quando uma guerra civil entre o emir (do árabe amir: prícipe ou líder guerreiro) da cidade santa e Aydamur, chefe da guarda do sultão mameluco, foi causada por problemas em relação a área de jurisdição de cada autoridade. Em Esmirna (na Ásia Menor), foi testemunho de expedições contra os cristãos, organizada pelo emir da cidade e o contra-ataque por parte de forças conjuntas do Papado, Genova e França. Em Herat descreveu a revolta dos sarabadalan ou sarbedar, composta por hordas que aderiram à Shi'a (xiismo) e constituíram um verdadeiro poder no Khurasan (no nordeste do atual Irã).

Ibn Battuta e as cidades não-árabes.

Na descrição das cidades asiáticas não-árabes, encontramos a estrutura urbana articulada em bairros separados, geralmente por muralhas, respeitando: motivos religiosos, étnicos, políticos ou comerciais. Em sua época, Constantinopla ainda pertencia ao Império Bizantino, durante sua visita à cidade relatou sua divisão: Istanbul era habitada pelos gregos e do outro lado do Corno de Ouro (chamado de Rio por Ibn Battuta) ficava Gálata, a parte da cidade reservada para os estrangeiros. É interessante a comparação que Ibn Battuta fez entre Istanbul-Gálata e Rabat-Salé, ambas separadas pela água. Entretanto nem Rabat e nem Salé eram lugares reservados apenas para estrangeiros.

A distribuição de Saray, a capital da Horda de Ouro, parece obedecer razões étnicas e a cronologia de assentamento de cada tribo. Nas populosas aglomerações urbanas da Índia e da China, estes bairros se converteram em verdadeiras cidades entrelaçadas. Ibn Battuta relatou sobre as sucessivas ampliações de Delhi a partir da velha cidade, seguindo o processo de consolidação do sultanato até formar as quatro cidades que encontra em sua chegada. Este relato é totalmente correto do ponto de vista histórico, havendo apenas alguns erros de datação. A descrição das cidades chinesas são feitas de forma sucinta, talvez produto de informação indireta mais do que da observação própria, como é o caso de Beijing ou Qanyanfu.

O relato sobre Hangzhou é muito mais detalhista e vivo, mencionando muitos nomes de hóspedes e acompanhantes muçulmanos, caracterizando suas seis cidades separadas por muralhas. Ibn Battuta afirmou: “é a maior cidade que meus olhos viram sobre a face da Terra: sua longitude equivale a três dias de marcha”.

A rihla reflete perfeitamente a situação minoritária do Islã na China, mas também descreveu a importância das comunidades muçulmanas dentro do Império Mongol. Outro importante tema é a tolerância religiosa do poder mongol e a certeza de que as agrupações muçulmanas da China nesta época são compostas geralmente não por indígenas convertidos, mas por muçulmanos emigrados.

Em relação aos produtos agrícolas da China, não dedica mais que algumas poucas e breves frases, acrescentando a suspeita acerca de sua passagem por este país. Se realmente viajou pela China, parece não ter estado em todos os lugares que afirmou. Ibn Battuta possivelmente supriu a carência da observação direta com informações sucintas e esteriotipadas recebidas de seus companheiros muçulmanos. O contraste com a Índia é claro: há várias páginas repletas de menções à diversas árvores, frutos, legumes e cereais, com informações sobre seu plantio e colheita. O tangerino também faz uma apreciação pormenorizada de plantas desconhecidas ou exóticas.

Além da descrição de plantas, Ibn Battuta também se preocupou com a zoologia. Em Ormuz encontrou com uma cabeça de baleia “que era como uma colina, com olhos como portas”. Mencionou por três vezes rinocerontes na Índia, sem incluir nenhum elemento fantástico em seu relato, como fez Marco Pólo.

Este não se trata de um texto definitivo sobre a vida e a importância da obra de Ibn Battuta neste blog. No futuro esperamos abordar mais detalhadamente cada aspecto por aqui tratado. Nossa intenção foi apenas fazer uma sucinta explicação da rihla e seu autor e interpretá-la como um documento de extrema importância para o estudo da História.

Foto: Mausoléu de Ibn Battuta (Tânger, Marrocos).
Fonte: Wikipedia.org

Mapa 1,2,3: IBN BATTUTA, A través del Islam (Madri: AlianzaLiteraria, 2005).
Mapa4: www.empiresmaps.com

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