segunda-feira, 8 de março de 2010

A alimentação, o Estado e a busca pela dignidade moral.



Imagem 1: Restaurante em Beijing.
Fonte: Diogo Farias.



A alimentação e o Estado:

            “Você já comeu?” Esta era uma forma muito comum de cumprimento na China, prova de que a alimentação e todas as atividades ligadas a ela possuem uma posição extremamente importante na cultura chinesa. Estas atividades incluem a aquisição, a preparação, a apresentação e o consumo do alimento. Os textos clássicos que guiavam os governantes e letrados chineses defendiam a promoção do bem-estar social como meio de se organizar uma sociedade harmônica. Mengzi afirmava que o governante deveria prover as necessidades básicas ao seu povo para assegurar que a lei e a ordem prevalecessem. Sua principal tarefa era criar condições para que o seus súditos tivessem acesso a uma quantidade de comida suficiente para sua subsistência. O não cumprimento deste princípio poderia provocar revoltas, que, teoricamente, indicariam a perda do “Mandato Celeste” (Tianming), ameaçando a sobrevivência da dinastia vigente.

A alimentação desempenhou um papel vital na formação do conceito de identidade dos han e na simbologia do Estado chinês. Textos antigos demonstravam grande atenção na seleção, nas diversas formas de preparação do alimento e sua oferenda aos ancestrais. Aqueles que praticavam corretamente seus rituais eram considerados civilizados, quando não, eram identificados como bárbaros. Estes textos associavam a culinária à civilização e estabeleceram o caldeirão para cozinhar alimentos – o ding, um caldeirão de três pernas -, como o símbolo do Estado.

Os povos civilizados eram vistos como “cozidos” e os bárbaros como “crus”; características que distinguiam aqueles que comiam grãos e refinavam sua comida cozinhando através do fogo, daqueles que não comiam grãos e nem carne cozida. Esta distinção entre civilização e barbárie, tão clara ao associar práticas alimentares com questões de identidade, constituía uma espécie de versão chinesa do “você é o que come”, difundida até ao menos o final da dinastia Qing, quando o grau de civilidade das minorias do império ainda era avaliado através dos seus costumes alimentares.

 
Foto 2: Ding.
Fonte: www.asianart.com


A antiga visão chinesa de sua superioridade cultural também se baseava, na relativa sofisticação do seu sistema de governo em comparação aos povos vizinhos. Desta forma, a culinária servia como uma eficiente metáfora para o governo chinês. No século IV a.C. o texto daoísta Dao De Jing, atribuído a Laozi, afirmava que “governar o país é como cozinhar um peixe pequeno”, o que significava que o cuidado e a atenção eram extremamente essenciais em ambos os casos. As habilidades gastronômicas eram uma importante qualificação no apontamento para cargos no serviço público. Talvez o mais antigo relato desta prática ocorreu com Yi Yin, que no segundo milênio a.C., tornou-se o primeiro ministro do Rei Tang da dinastia Shang. De acordo com sua lenda, Yi Yin foi uma criança abandonada, cujos pais adotivos o ensinaram a cozinhar e suas habilidades na cozinha chamaram a atenção do rei. Yi Yin comparava o mundo a uma cozinha, na qual um bom governo deve preparar uma boa refeição. Na cozinha era necessário compreender os sabores para combiná-los de forma correta, na política era preciso perceber os sofrimentos e aspirações do povo, para satisfazer suas necessidades.

Yi Yin elaborou a teoria daquilo que seria a base da teoria culinária chinesa. Ele classificou os alimentos em diversas categorias para identificar a forma correta de sua preparação, a fim de retirar seu odor e produzir pratos apetitosos. Adicionavam-se condimentos para atingir um sabor balanceado que não fosse “excessivamente doce ou azedo, sendo levemente temperado, porém sem faltar sabor, utilizando sua gordura, sem ficar com a boca oleosa”. Muitas das categorias de Yi Yin ainda são utilizadas hoje.



A alimentação e a moral confuciana:

Uma da principais características da culinária chinesa é a sua variedade. O consumo da maioria dos ingredientes a disposição não era limitada por tabus religiosos, apesar da contribuição do Budismo para a difusão do vegetarianismo. Mesmo os mais humildes tinham acesso a diferentes tipos de alimentos. Com a expansão territorial, novos produtos tornaram-se disponíveis, sendo gradativamente incorporados à cultura alimentar chinesa, porém o povo ainda continuava a comer apenas o que era produzido localmente. Durante a Dinastia Song (960-1279), houve um grande aumento da produção agrícola junto ao desenvolvimento do comércio. O crescimento urbano aliado a estes fatores transformou a dieta chinesa, permitindo incluir alimentos vindos de outras regiões do Império e o desenvolvimento de um mercado de artigos luxuosos.

As conexões da China com outras partes do mundo, particularmente com a Ásia central e com o sudeste asiático, permitiram um intenso fluxo de produtos, que mais tarde incorporaram o repertório de possíveis ingredientes. Em alguns casos isto incluía itens exóticos, como ninho de pássaros, pepinos-do-mar e produtos do Novo Mundo como amendoim e batata doce. Os estrangeiros também influenciaram o gosto por certos tipos de alimentos, que poderiam ser produzidos em casa, como iogurte e outros derivados de leite, muito populares na Ásia Central. Alguns desses alimentos foram introduzidos por causa de razões políticas - muitos deles associados aos mongóis. A segunda característica da cultura alimentar chinesa é que a influência externa afetou sua culinária em todos os níveis e a “cozinha chinesa” mudava constantemente.

Finalmente, mas não menos importante, a dieta era ligada à saúde. Comer de forma correta, escolhendo os ingredientes certos e combinando-os de forma apropriada, era visto como o principal caminho para a boa saúde e longevidade. Esta visão proporcionou uma extensa literatura sobre nutrição e dietética, que estava ligada aos ideais de frugalidade, moderação e balanço.

O período entre os séculos V e III a.C. testemunhou uma revolução no pensamento chinês, havia uma falta de consenso se a natureza humana era originalmente boa ou má. Os pensadores chineses geralmente concordavam com a ideia de evolução através da devoção ao autodesenvolvimento do indivíduo, cujo último propósito era o alcance da perfeição, ou da sabedoria. Com o entendimento que tudo no cosmo estava interconectado, não havendo separação entre mente e corpo, o cuidado com este era tão importante quanto à busca pela excelência intelectual e espiritual. Mente e corpo não funcionam isolados e fazem parte de um mesmo organismo. O relacionamento entre alimentação e saúde derivou da teoria da interconectividade entre o mundo material e moral.

É fácil entender como a gastronomia, no sentido da compreensão das propriedades dos alimentos, de como atingir o equilíbrio perfeito e do caminho pelo prazer dos sabores, tornou-se tão importante para a autodesenvolvimento do individuo. Pensava-se que comer corretamente era essencial para o bem-estar físico, constituindo uma parte essencial do caminho para o cultivo da dignidade moral do ser humano. Essas considerações eram muito mais relevantes para os membros da elite letrada chinesa do que para a maioria das pessoas que viviam a beira do nível de subsistência, mas é claro que essas ideias exerciam influencia na cultura popular.

Os chineses não menosprezavam os prazeres da uma boa refeição, pelo contrário, a atitude ideal era a apreciação das qualidades do alimento e do trabalho de sua preparação. A gula era vista com desaprovação, mas as crenças chinesas não tinham um equivalente aos sete pecados capitais do Cristianismo. É claro que a frugalidade era uma virtude que nascia da necessidade, mas também constituía uma importante manifestação da preferência pelo balanço e contra o excesso em todas as maneiras. Uma série de pensadores, incluindo Confúcio (Kong Fuzi) e Mêncio (Meng Zi), enunciaram estes princípios, através dos ensinamentos dos reis sábios, onde uma pessoa só poderia comer quando tivesse fome e assim apenas saciar suas necessidades. Mêncio e outros filósofos criticavam governantes que desfrutavam fartos banquetes em seus palácios, enquanto lá fora, o povo vivia na miséria.

Contava-se que pessoas más geralmente eram gulosas ou causavam atos de maldade por causa da gula. Condenações à gula conviviam com o apreço da elite por hábitos que elevariam sua posição social, incluindo a alta gastronomia. Esta atitude tem suas origens na reafirmação ritual das distinções entre os grupos sociais, contribuindo para a gastronomia ser distinguida entre as artes atribuídas aos homens letrados, junto ao conhecimento da pintura e da poesia. Diversas pinturas e poemas abordavam a gastronomia como tema. O poeta do período Song, Su Dongpo (Su Shi, 1036-1101), frequentemente fazia referência aos prazeres da comida e foi homenagiado por uma prato, o Porco Dongpo.

Na China, o interesse pela alimentação ia além do conceito de subsistência, desempenhando um papel de destaque na vida cultural, social e política desta civilização. A alimentação foi fundamental para a construção da identidade han e dos fundamentos do Estado chinês. Entre a elite chinesa, o conhecimento da culinária era bem visto e estimulado, a apreciação da comida era distinta da mera avareza e este ato estava ligado à busca pela dignidade moral.

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