Imagem 1: Restaurante em Beijing.
Fonte: Diogo Farias.
A alimentação e o Estado:
“Você já comeu?”
Esta era uma forma muito comum de cumprimento na China, prova de que a
alimentação e todas as atividades ligadas a ela possuem uma posição
extremamente importante na cultura chinesa. Estas atividades incluem a
aquisição, a preparação, a apresentação e o consumo do alimento. Os textos
clássicos que guiavam os governantes e letrados chineses defendiam a promoção
do bem-estar social como meio de se organizar uma sociedade harmônica. Mengzi
afirmava que o governante deveria prover as necessidades básicas ao seu povo
para assegurar que a lei e a ordem prevalecessem. Sua principal tarefa era
criar condições para que o seus súditos tivessem acesso a uma quantidade de
comida suficiente para sua subsistência. O não cumprimento deste princípio poderia
provocar revoltas, que, teoricamente, indicariam a perda do “Mandato Celeste” (Tianming), ameaçando a sobrevivência da
dinastia vigente.
A
alimentação desempenhou um papel vital na formação do conceito de identidade
dos han e na simbologia do Estado chinês. Textos antigos demonstravam grande
atenção na seleção, nas diversas formas de preparação do alimento e sua
oferenda aos ancestrais. Aqueles que praticavam corretamente seus rituais eram
considerados civilizados, quando não, eram identificados como bárbaros. Estes textos
associavam a culinária à civilização e estabeleceram o caldeirão para cozinhar
alimentos – o ding, um caldeirão de três pernas -, como o símbolo do
Estado.
Os
povos civilizados eram vistos como “cozidos” e os bárbaros como “crus”;
características que distinguiam aqueles que comiam grãos e refinavam sua comida
cozinhando através do fogo, daqueles que não comiam grãos e nem carne cozida. Esta
distinção entre civilização e barbárie, tão clara ao associar práticas
alimentares com questões de identidade, constituía uma espécie de versão
chinesa do “você é o que come”, difundida até ao menos o final da dinastia
Qing, quando o grau de civilidade das minorias do império ainda era avaliado
através dos seus costumes alimentares.
Foto 2: Ding.
Fonte: www.asianart.com
A
antiga visão chinesa de sua superioridade cultural também se baseava, na
relativa sofisticação do seu sistema de governo em comparação aos povos
vizinhos. Desta forma, a culinária servia como uma eficiente metáfora para o
governo chinês. No século IV a.C. o texto daoísta Dao De Jing, atribuído
a Laozi, afirmava que “governar o país é como cozinhar um peixe pequeno”, o que
significava que o cuidado e a atenção eram extremamente essenciais em ambos os
casos. As habilidades gastronômicas eram uma importante qualificação no apontamento
para cargos no serviço público. Talvez o mais antigo relato desta prática
ocorreu com Yi Yin, que no segundo milênio a.C., tornou-se o primeiro ministro
do Rei Tang da dinastia Shang. De acordo com sua lenda, Yi Yin foi uma criança
abandonada, cujos pais adotivos o ensinaram a cozinhar e suas habilidades na
cozinha chamaram a atenção do rei. Yi Yin comparava o mundo a uma cozinha, na
qual um bom governo deve preparar uma boa refeição. Na cozinha era necessário
compreender os sabores para combiná-los de forma correta, na política era
preciso perceber os sofrimentos e aspirações do povo, para satisfazer suas
necessidades.
Yi
Yin elaborou a teoria daquilo que seria a base da teoria culinária chinesa. Ele
classificou os alimentos em diversas categorias para identificar a forma
correta de sua preparação, a fim de retirar seu odor e produzir pratos
apetitosos. Adicionavam-se condimentos para atingir um sabor balanceado que não
fosse “excessivamente doce ou azedo, sendo levemente temperado, porém sem
faltar sabor, utilizando sua gordura, sem ficar com a boca oleosa”. Muitas das
categorias de Yi Yin ainda são utilizadas hoje.
A
alimentação e a moral confuciana:
Uma
da principais características da culinária chinesa é a sua variedade. O consumo
da maioria dos ingredientes a disposição não era limitada por tabus religiosos,
apesar da contribuição do Budismo para a difusão do vegetarianismo. Mesmo os
mais humildes tinham acesso a diferentes tipos de alimentos. Com a expansão
territorial, novos produtos tornaram-se disponíveis, sendo gradativamente
incorporados à cultura alimentar chinesa, porém o povo ainda continuava a comer
apenas o que era produzido localmente. Durante a Dinastia Song (960-1279),
houve um grande aumento da produção agrícola junto ao desenvolvimento do
comércio. O crescimento urbano aliado a estes fatores transformou a dieta
chinesa, permitindo incluir alimentos vindos de outras regiões do Império e o
desenvolvimento de um mercado de artigos luxuosos.
As
conexões da China com outras partes do mundo, particularmente com a Ásia central
e com o sudeste asiático, permitiram um intenso fluxo de produtos, que mais
tarde incorporaram o repertório de possíveis ingredientes. Em alguns casos isto
incluía itens exóticos, como ninho de pássaros, pepinos-do-mar e produtos do
Novo Mundo como amendoim e batata doce. Os estrangeiros também influenciaram o
gosto por certos tipos de alimentos, que poderiam ser produzidos em casa, como
iogurte e outros derivados de leite, muito populares na Ásia Central. Alguns
desses alimentos foram introduzidos por causa de razões políticas - muitos
deles associados aos mongóis. A segunda característica da cultura alimentar
chinesa é que a influência externa afetou sua culinária em todos os níveis e a
“cozinha chinesa” mudava constantemente.
Finalmente,
mas não menos importante, a dieta era ligada à saúde. Comer de forma correta,
escolhendo os ingredientes certos e combinando-os de forma apropriada, era
visto como o principal caminho para a boa saúde e longevidade. Esta visão
proporcionou uma extensa literatura sobre nutrição e dietética, que estava
ligada aos ideais de frugalidade, moderação e balanço.
O
período entre os séculos V e III a.C. testemunhou uma revolução no pensamento
chinês, havia uma falta de consenso se a natureza humana era originalmente boa
ou má. Os pensadores chineses geralmente concordavam com a ideia de evolução
através da devoção ao autodesenvolvimento do indivíduo, cujo último propósito
era o alcance da perfeição, ou da sabedoria. Com o entendimento que tudo no
cosmo estava interconectado, não havendo separação entre mente e corpo, o
cuidado com este era tão importante quanto à busca pela excelência intelectual
e espiritual. Mente e corpo não funcionam isolados e fazem parte de um mesmo
organismo. O relacionamento entre alimentação e saúde derivou da teoria da
interconectividade entre o mundo material e moral.
É
fácil entender como a gastronomia, no sentido da compreensão das propriedades
dos alimentos, de como atingir o equilíbrio perfeito e do caminho pelo prazer
dos sabores, tornou-se tão importante para a autodesenvolvimento do individuo.
Pensava-se que comer corretamente era essencial para o bem-estar físico,
constituindo uma parte essencial do caminho para o cultivo da dignidade moral
do ser humano. Essas considerações eram muito mais relevantes para os membros
da elite letrada chinesa do que para a maioria das pessoas que viviam a beira
do nível de subsistência, mas é claro que essas ideias exerciam influencia na
cultura popular.
Os
chineses não menosprezavam os prazeres da uma boa refeição, pelo contrário, a
atitude ideal era a apreciação das qualidades do alimento e do trabalho de sua
preparação. A gula era vista com desaprovação, mas as crenças chinesas não
tinham um equivalente aos sete pecados capitais do Cristianismo. É claro que a
frugalidade era uma virtude que nascia da necessidade, mas também constituía
uma importante manifestação da preferência pelo balanço e contra o excesso em
todas as maneiras. Uma série de pensadores, incluindo Confúcio (Kong Fuzi) e
Mêncio (Meng Zi), enunciaram estes princípios, através dos ensinamentos dos
reis sábios, onde uma pessoa só poderia comer quando tivesse fome e assim
apenas saciar suas necessidades. Mêncio e outros filósofos criticavam
governantes que desfrutavam fartos banquetes em seus palácios, enquanto lá
fora, o povo vivia na miséria.
Contava-se
que pessoas más geralmente eram gulosas ou causavam atos de maldade por causa
da gula. Condenações à gula conviviam com o apreço da elite por hábitos que
elevariam sua posição social, incluindo a alta gastronomia. Esta atitude tem
suas origens na reafirmação ritual das distinções entre os grupos sociais,
contribuindo para a gastronomia ser distinguida entre as artes atribuídas aos
homens letrados, junto ao conhecimento da pintura e da poesia. Diversas
pinturas e poemas abordavam a gastronomia como tema. O poeta do período Song,
Su Dongpo (Su Shi, 1036-1101), frequentemente fazia referência aos prazeres da
comida e foi homenagiado por uma prato, o Porco Dongpo.
Na
China, o interesse pela alimentação ia além do conceito de subsistência,
desempenhando um papel de destaque na vida cultural, social e política desta
civilização. A alimentação foi fundamental para a construção da identidade han
e dos fundamentos do Estado chinês. Entre a elite chinesa, o conhecimento da
culinária era bem visto e estimulado, a apreciação da comida era distinta da
mera avareza e este ato estava ligado à busca pela dignidade moral.
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