sexta-feira, 29 de abril de 2011

O conflito entre Camboja e Tailândia

 Imagem: um soldado tailandês faz guarda no templo Ta Moan.
Fonte: khmerization.blogspot.com (Tawatchai Kemgumnerd).

O conflito ao longo da fronteira entre o Camboja e a Tailândia continua depois que dois acordos de cessar-fogo foram desrespeitados em 22 de abril,  desde então cerca de 17 pessoas foram mortas. A disputa gira em torno do domínio de uma área próxima às ruínas de antigos templos hindus. Cerca de 50 mil pessoas dos dois lados da fronteira fugiram para abrigos temporários, enquanto tropas tailandesas e cambojanas continuam patrulhando a região. Não se espera que estas escaramuças conduzam a um conflito em larga escala, mas a disputa já fechou o comércio entre fronteiras e causou nervosismo entre as populações dos dois países.

Imagem: Tailândia e Camboja disputam o domínio sobre o templo do século XIII Ta Muen Thom, que se localiza na fronteira entre os dois países. Este conflito fez o Departamento de Artes da Tailandês abandonar o sítio em 2001.
Fonte: khmerization.blogspot.com
Os militares tailandeses afirmam que sua luta tem o objetivo de impedir a tentativa do Camboja em dominar as ruínas dos templos Ta Krabey e Ta Moan. Ainda segundo eles, o Camboja quer expandir seu controle sobre a área após as conquistas de 1962, quando a Corte Internacional de Justiça em Haia concedeu ao país o domínio sobre as ruínas de Preah Vihear, a cerca de 200 quilômetros a leste do local dos conflitos atuais.

Imagem: Áreas de conflito entre Camboja e Tailândia
 Fonte: www.tamoan.net
Ambos os lados trocaram acusações de agressão tornando quase impossível saber quem atirou primeiro. Em fevereiro, quatro dias de conflitos perto de Preah Vihear matou um total de dez soldados antes das hostilidades cessarem. O Secretário Geral da ONU Ban Ki-moon e a ASEAN - da qual o Camboja e a Tailândia são membros - pediram para os dois países negociarem um cessar-fogo, mas seus líderes utilizam o conflito para cultivar um sentimento nacionalista entre a sua população e solidificar suas bases de poder. O Camboja pretende internacionalizar o problema e pedir para a ONU e a Indonésia intermediarem o conflito, em contrapartida, a Tailândia prefere uma negociação bilateral.
Durante este fim de semana, os cambojanos afirmaram que tropas tailandesas lançaram projéteis de 75mm e 105mm "carregados com gáses venenosos", mas não há evidências do ocorrido e Bangkok nega esta alegação. Em fevereiro, a Tailândia negou ter lançado bombas de fragmentação contra o Camboja, mas posteriormente admitiu o seu uso. Em compensação, a Tailândia acusa o Camboja de utilizar civis como escudos humanos em áreas militarizadas. Os EUA mantêm boas relações com os dois países e não veem necessidade de intervirem no conflito. 
A Tailândia sentiu-se provocada pelo plano cambojano de explorar o potencial turístico das ruínas de Preah Vihear, um templo hindu do século XI. Em 2008, este templo foi declarado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.  Através de seu novo status Preah Vihear pode se tornar uma atração turística economicamente valiosa para o Camboja, mas para explorar esse potencial há a necessidade de reformar o caminho até a falésia onde se situa o templo. O problema é que esta estrada atravessa o território disputado pelos dois países.

Imagem: Área contestada pela Tailândia 
Fonte: www.preah-vihear.com

O conflito coincide com o temor da imprensa e dos políticos de oposição tailandeses de que os militares do país estajam preparando um  putsch para instalar um novo regime fantoche. Estes militares receiam um possível retorno do antigo primeiro-ministro Thaksin Shinawatra, que foi retirado do cargo num sangrento golpe em 2006. Thaksin está exilado em Dubai para escapar de uma sentença de dois anos de prisão por corrupção durante sua administração. Após a queda de Thaksin, o primeiro-ministro cambojano Hun Sen o apontou como seu conselheiro econômico especial, cargo que foi recusado posteriormente.

 Imagem: soldados cambojanos caminham durante patrulha (Preah Vihear, 2008).
Fonte: ki-media.blogspot.com
Um ano atrás, cerca de dez mil "camisas vermelhas", membros da Frente Nacional Unida da Democracia contra a Ditadura (UDD), realizaram uma insurreição que durou nove semanas em Bangkok, eles protestaram pela realização de eleições livres com o objetivo de trazer de volta Thaksin ao poder. Segundo a organização, o governo de Abhisit Vejjajiva tomou o poder de forma "ilegítima", apoiado pelo exército e pelo poder judiciário. Os camisas vermelhas foram brutalmente reprimidos pelo exército, num conflito que vitimaram 91 pessoas, a maioria delas civis. Muitos líderes camisas vermelhas fugiram para o Camboja. 
Desde a criação da Monarquia Constitucional em 1932, a Tailândia enfrenta um longo ciclo de golpes realizados por seus militares e chegou a ter neste período 16 constituições, sendo que a atual está em vigor desde 2007 e é alvo de crítica dos camisas vermelhas.
Abhisit, que assumiu o cargo de primeiro-ministro em dezembro de 2008, desfruta de um forte apoio militar e seu governo realizou uma renovação dos equipamentos militares ao comprar uma dúzia de aeronaves suecas Gripen, seis submarinos usados alemães e diversos blindados ucranianos. Em 2009, de acordo com o Stockholm International Peace Institute, os gastos militares tailandeses chegaram a 2,9 bilhões de dólares enquanto o Camboja gastou “apenas” 191 milhões de dólares. Abhisit afirmou que pretende realizar eleições nacionais em junho ou julho deste ano, mas muitos analistas desconfiam que os militares não queiram realizá-las, devido à preocupação de que um governo pró-Thaksin possa assumir o poder. A oposição tailandesa já afirma que se vencerem as eleições irão fazer um acordo com o Camboja, destino de muitos exilados políticos tailandeses.
A Tailândia sempre exerceu uma pressão histórica sobre o Camboja, sendo que entre os séculos XVIII e XIX muitos monarcas cambojanos eram vassalos dos reis do Sião (antigo nome da Tailândia). O conflito territorial agravou-se com o domínio colonial francês sobre o Camboja. Estas antigas rivalidades inflamam ainda mais a tensão na fronteira dos dois países. A situação instável continua sem um debate decisivo sobre a sua resolução e ainda podem ocorrer novos conflitos. O contexto político interno tailandês tornou o caso ainda mais importante para o orgulho dos militares do país e da legitimidade do regime atual, dificultando a realização de um acordo.  
Do lado cambojano, Hun Sen utiliza o nacionalismo para promover seu regime e aproveita a situação para explorar um vizinho que enfrenta diversas facções políticas. Hun Sen vê neste conflito uma chance de marginalizar seus opositores. Em 2008, quando Preah Vihear tornou-se Patrimônio da Humanidade, a decisão foi festejada com um concerto gratuito no Estádio Olímpico de Phnom Penh. Com o sentimento nacionalista revigorado, o Partido Popular Cambojano (PPC) conseguiu 90 das 123 cadeiras da Assembléia Nacional, nas eleições de 2008. Além de explorar o orgulho patriota para vencer as eleições, Hun Sen utiliza o conflito para fazer com que seu filho Hun Manet seja seu sucessor como próximo primeiro-ministro do país.
Hun Manet se formou em 1999 na Academia Militar de West Point e ocupa a posição de vice-comandante das Forças Armadas Reais e de diretor do Ministério da Defesa, onde controla um departamento de contra-terrorismo sustentado pelos EUA. A carreira de seu pai, que fora comandante de um regimento do Khmer Vermelho na década de 1970, demonstra que a experiência militar pode contribuir em sua escalada ao poder.
O conflito com a Tailândia ajuda a mascarar os conflitos internos cambojanos, como acusações de corrupção contra alguns membros do governo e as incursões realizadas pelos vietnamitas na fronteira oeste do país. Atualmente, a oposição está fragmentada e poucos duvidam que o PPC vencerá  as eleições para os conselhos comunais no ano que vem. Neste contexto, o conflito passou a representar mais o debate entre as dinâmicas internas de cada país do que uma escalada para uma guerra em grande escala entre os dois Estados, porém esta possibilidade não pode ser totalmente descartada.
 
Imagem: Preah Vihear
Fonte:www.doismb.com.br

terça-feira, 26 de abril de 2011

Carlos


A produção franco-germana "Carlos", com direção de Olivier Assayas, é dividida em três partes com cerca de 1 hora e 40 minutos cada e retrata a vida do terrorista venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido como Carlos, o Chacal. Este terrorista lutou a favor da revolução internacional comunista, dos países subdesenvolvidos e pela causa da Palestina nas décadas de 1970 e 1980. Carlos é responsável por uma série de atividades terroristas, entre elas um ataque contra uma reunião da cúpula da OPEP em 1975, que acabou com o sequestro de 42 pessoas. Provavelmente até 2001, ou seja, quando dois aviões atacaram o World Trade Center, Carlos foi o terrorista que mais atraiu a atenção da midía no mundo. Em 1994, foi preso no Sudão e até hoje cumpre pena numa prisão francesa pelo assassinato de dois policiais franceses.
O primeiro episódio da minissérie inicia com Carlos vivendo em Paris (com algumas passagens em Londres) após uma conturbada experiência em Moscou, quando não conseguiu completar seus estudos na superpotência comunista.São retratados os anos anteriores ao ataque contra a OPEP em 1975, quando Carlos se envolveu com grupos revolucionários como o Exército Vermelho, uma organização marxista japonesa, e as Células Revolucionárias, um grupo marxista alemão.

Foto: Carlos em ação durante o ataque contra a reunião da cúpula da OPEP em Viena (1975).

O segundo episódio começa com o ataque de Carlos contra a reunião da OPEP em Viena e aprofunda a relação do terrorista com agentes da KGB, do Iraque de Saddam Hussein e da Síria de Hafiz al-Assad (o pai de Bashar). A terceira parte demonstra como Carlos teve dificuldades em se adaptar no novo contexto mundial após a queda do bloco socialista. É neste ponto que  a história do terrorista venezuelano torna-se relativamente mais monótona mas extremamente interessante  ao demonstrar as mudanças ocorridas na ordem mundial pós-1989.
Quais foram estas mudanças?
A mais evidente é o fim da Guerra Fria e a queda do modelo socialista soviético, um ideal que moveu sonhos e pesadelos de muitos, responsável por uma das maiores atrocidades realizadas pelo homem. O objetivo era atingir o ideal da justiça social, de igualdade entre os povos, o fim do Estado e da miséria. Porém, o sonho foi anulado pela corrupção, histeria, pressão psicológica e social, privilégios que mantinham o poder de uma casta e muitas decisões equivocadas.
A psicologia de Carlos, complexa em sua natureza, carregava em seu seio o estigma que impediu este sonho se tornar realidade. Era um defensor dos povos oprimidos e explorados, mas o seu método era o terrorismo. Lutava pela igualdade social, entretanto suas táticas se mostravam custosas e seus "mecenas" permitiam que o terrorista usufruísse um padrão de vida relativamente alto.O filme de Olivier Assayas retrata um Carlos que transita entre o ativista revolucionário sonhador e um playboy violento e galanteador.

Fotos: Carlos boêmio e conquistador.

Carlos tinha seus ideais e viu seus serviços perderem espaço em um mundo em mudanças. Estas começam ser apresentadas no filme quando é expeculado o assassinato do presidente egípcio Anwar al-Sadat, que assinou um tratado de paz com Israel em 1979 e aproximou-se dos EUA. Sadat foi assassinado em 1981 e o Chacal não esteve envolvido nesta operação. Os líderes do nacionalismo árabe eram seculares que defendiam um Estado laico, possuíam um discurso que se assemelhava à retórica marxista e defendiam uma política de independência em relação às duas potências mundiais, EUA e URSS, porém na prática mantinham relações com o bloco socialista através de acordos comerciais, financeiros e de cooperação militar. O filme ilustra este contexto através da atuação de revolucionários marxistas em operações pela causa da Palestina, contrabando de armas e as relações da KGB com diversos ditadores árabes.

Foto: Carlos, o Chacal.
Com as mudanças pós-1989, os líderes nacionalistas iniciaram uma aproximação com a Europa Ocidental e os EUA, ainda hoje está fresca na nossa memória as imagens de Kaddafi cumprimentando os líderes  destes Estados ou a ajuda bilionária que os norte-americanos enviavam para o Egito de Mubarak. Kaddafi outrora acusado de financiar atentados terroristas passou a vender gás e petróleo para a Europa e entre seus  "antigos" sócios estão Silvio Berlusconi e a família Agnelli dona da FIAT. Mas nem todos estes líderes nacionalistas passaram a ter relações harmoniosas com a Europa e os EUA, como o  iraquiano Saddam Hussein e a relação cheia de avanços e retrocessos com a família Assad. Carlos acabou por ficar cada vez mais isolado devido a dificuldade de continuar a seguir os seus ideais e "vender" seus serviços na nova conjuntura internacional.
O Oriente Médio nestas últimas três décadas viu a expansão de práticas religiosas mais ortodoxas - não estou falando de violência e nem de terrorismo - como por exemplo o aumento do número de mulheres usando o niqab e o crescimento de partidos políticos aliados à movimentos religiosos. Isto não quer dizer que a sociedade foi dominada por estes grupos.
Os já desacreditados nacionalistas seculares estão sendo desafiados  pelo povo - alguns já caíram - e os partidos de esquerda árabes não possuem mais a força que tinham antigamente.  Entretanto, a situação é mais complexa e não se aplica a todas as outras regiões, nas revoltas populares o caráter religioso não é protagonista, sua força motriz é a crise econômica e a necessidade de reformas políticas. Mesmo no Bahrain, uma monarquia, onde há um certo conflito religioso entre uma elite sunita e uma maioria xiita, entre os manifestantes há vários sunitas, o que demonstra que não se deve exacerbar seu caráter religioso.

Foto: Magadalena Kopp, ex-esposa de Carlos.

Mas ao analisar o terrorismo em si, uma consequência direta da queda do bloco socialista foi o declínio da atividade de grupos terroristas de esquerda, com seus militantes que não eram mártires. Junto a este fenômeno viu-se o crescimento das atividades de grupos terroristas islâmicos, ou pelo menos de seu impacto na mídia "ocidental", e do martírio entre os seus militantes. Carlos era um terrorista pertencente a uma "velha escola" que posteriormente se converteu ao Islã e na prisão escreveu um livro chamado Revolucionary Islam, onde defende os ataques de Osama bin Laden ao WTC e a resistência de Saddam Hussein contra a invasão norte-americana do Iraque. A conversão de Carlos ao Islã é algo a ser investigado e discutido: trata-se de uma "adaptação" aos novos tempos, uma escolha religiosa ou algo ainda mais complexo do que estas duas alternativas?
Em relação a produção, orçada em cerca de 18 milhões de dólares, chega a surpreender pela sua qualidade, mesmo se tratando de uma produção made for tv. O também venezuelano Édgar Ramírez que interpreta o papel principal, não compromete e carrega de forma segura a complexidade do papel - lembrando que ele interpreta Carlos por mais de cinco horas e tem que se expressar em diversas línguas. A série chegou a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Minissérie em 2011 e Carlos move um processo contra os responsáveis pela sua produção.

Foto: Carlos, o Chacal.

terça-feira, 19 de abril de 2011

"Do al-Andalus ao Magrebe": os judeus sefarditas não emigraram apenas para os territórios otomanos, muitos foram para o Magrebe

O legado do al-Andalus e a comunidade judaica

O domínio islâmico da Península Ibérica durou cerca de 500 anos desde a chegada de um exército liderado pelo general berbere Tariq em 711 até a batalha de Las Navas de Tolosa em 1212. Após esta vitória das forças cristãs, Granada permaneceu como o último bastião do domínio islâmico até sua tomada pelos reis católicos Fernando e Isabel em 1492, mesmo ano em que Cristóvão Colombo chegou a América. Os árabes chamavam a Península Ibérica de al-Andalus e muitos pensaram que este nome estava ligado com a passagem dos “bárbaros” vândalos pela região antes de organizarem um reino no Norte da África. Porém, segundo Joaquín Vallvé, da Universidade Complutense de Madrid, Jazīrat al-Andalus é uma tradução pura e simples de "Ilha do Atlântico" ou Atlântida, resultado de uma transmissão literária do mito de Platão.

Quando chegaram a Península Ibérica, os árabes encontraram a agricultura da região em declínio e tiveram que implantar novas técnicas de cultivo e irrigação do solo, mas também reintroduziram, aperfeiçoaram e expandiram antigas técnicas romanas. O mesmo ocorreu com a introdução de novas culturas, como a cana-de-açúcar, e a reintrodução de alimentos e condimentos que haviam caído em desuso durante o período visigótico, como a utilização de algumas especiarias, por exemplo, o açafrão, cuja qualidade cultivada hoje na Espanha é reconhecida por chefs no mundo inteiro. Muitas das técnicas de irrigação e vegetais cultivados pelos muçulmanos no al-Andalus foram posteriormente utilizados por portugueses e espanhóis na colonização da América, a própria cana-de-açúcar trazida pelos árabes foi durante cerca de três séculos o principal produto explorado pelos colonizadores do Brasil.


Foto: Moinho da Albolafia (Córdoba, Espanha).

Fonte: Diogo Farias.


Os árabes colocaram o al-Andalus em contato com as caravanas comerciais que partiam da China e Índia e cruzavam toda a Ásia Central, Oriente Médio e Norte da África, formando uma abastada comunidade mercantil nas medinas de Córdoba, Sevilha, Valência e Múrcia. Estradas, moinhos, diques, pontes, muralhas, mesquitas, hospitais, estabelecimentos destinados a acolher viajantes (khan) e palácios foram construídos. Entre os legados arquitetônicos do período mais conhecidos estão o Castelo de São Jorge em Lisboa, a Grande Mesquita de Córdoba, que hoje abriga uma catedral cristã, a Giralda e o pátio da Catedral de Sevilha que pertenciam à antiga mesquita da cidade e a Alhambra, a cidadela dos Nasridas de Granada.

O al-Andalus tornou-se um centro cultural de extrema importância no Mundo Islâmico, a sua localização periférica forçou os andalusis desenvolverem um patrimônio cultural próprio que deixou um legado incalculável tanto para os povos ibéricos quanto para a civilização árabe. Sevilha e Córdoba eram os centros culturais da península, que viram surgir juristas, poetas, médicos, geógrafos e historiadores notáveis, sendo que alguns deles eram judeus como Ibn Janāh e Ibn Maymūn (Maimônides). Os árabes tiveram um papel importante na preservação e no estudo da cultura greco-latina tão importante para formação da identidade dos europeus e do “mundo ocidental”. No campo lingüístico, após o latim, o árabe foi a língua que mais emprestou vocábulos para o português. Os árabes também eram exímios navegadores e transmitiram aos portugueses algumas invenções chinesas como a bússola, o astrolábio e a pólvora.

Quando os muçulmanos cruzaram o estreito de Gilbraltar para conquistar a Península Ibérica, os judeus já viviam na península. Eles acolheram os recém-chegados árabes com entusiasmo, por causa da perseguição que sofriam durante o período visigótico. Sob o domínio dos muçulmanos, cristãos e judeus tinham liberdade para praticar suas religiões, pois eram considerados “Povos do Livro” (ahl al-kitāb), por venerarem Abraão e outros profetas, que segundo a tradição islâmica, foram precursores de Muhammad. Em troca da liberdade de culto deveriam pagar um imposto individual chamado jizya. Judeus viviam em bairros próprios, geralmente no interior das muralhas das medinas árabes, onde poderiam construir suas sinagogas, como a que hoje se encontra na judería de Córdoba. Os judeus atuavam como mercadores, agentes financeiros, cobradores de impostos e tinham livre acesso às funções da burocracia estatal. Apesar da liberdade de culto, houve períodos em que cristãos e judeus foram perseguidos, mas estes parecem ter sido exceção e geralmente estavam ligados a um contexto de crises políticas, econômicas e com o recrudescimento da ortodoxia religiosa durante as dinastias Almorávida (1040-1147) e Almóada (1130-1269).


Foto: detalhe da decoraçãoda sinagoga da judería de Córdoba.

Fonte: Diogo Farias.


A emigração dos judeus e dos muçulmanos.

No século XIII, os reinos cristãos passaram a controlar a maior parte do território ibérico, através de uma longa luta conhecida como Reconquista que somente concretizaria o domínio cristão da península com a conquista de Granada em 1492. Apesar da quantidade de mouros (mudéjares) exceder o número de judeus na Espanha cristã, foram os judeus e os “cristão-novos” (judeus convertidos ao cristianismo) que por todo o século XV foram alvo primário da legislação de pureza social e mais tarde da Santa Inquisição. Isso se explica pelo fato de as duas comunidades serem muito diferentes em sua distribuição e função. A maioria dos muçulmanos trabalhava no campo ao passo que os judeus concentravam-se nas cidades, onde tensões ligadas às disputas comerciais poderiam facilmente gerar conflitos. Contribuíram ainda contra a imagem dos judeus, o fato deles serem responsabilizados pela morte de Cristo e por serem encarregados de coletar os impostos. Os muçulmanos eram considerados um inimigo externo, admirados como grandes combatentes, porém infiéis seguidores do "anticristo" Muhammad. Desde o início do século XV, ataques cada vez mais violentos levaram judeus a aceitarem o batismo.


Fonte: NICOLLE, D. Atlas Histórico del Mundo Islámico. Madrid: EDIMAT Libros, 2005, p. 105.


Em 31 de março de 1492, foi declarada a expulsão definitiva dos judeus crentes da Espanha, porém uma capitulação assinada em 1491 já previa a “transferência dos judeus de Granada para o Norte da África”, sob a alegação de que a presença de judeus corromperia a re-cristianização da península, entretanto a opção de conversão continuava aberta. Cerca de 50 mil a 80 mil judeus teriam sido expulsos e fugido para o Marrocos, Península Itália e Império Otomano.

Em 1502, os reis católicos queriam acelerar o processo de conversão de Granada, assim foi estipulado que todos os muçulmanos tinham de escolher entre o batismo ou deixar a Espanha. Durante o século XIII, a maioria dos muçulmanos que viviam na Península Ibérica havia emigrado para o Magrebe ou Oriente Médio, porém muitos dos que permaneceram em Granada já haviam emigrado para as regiões citadas na época de sua tomada. Entretanto, houve muitos que fugiram para Aragão e Navarra onde ainda poderiam ser muçulmanos. Foi apenas o neto de Isabel, Carlos V, que ampliou a fórmula do “batismo ou expulsão” para todos os reinos espanhóis. O último julgamento de muçulmanos ocorreu em Cartagena em 1769, onde um grupo foi descoberto no interior de uma mesquita secreta. No século XVI, a busca pelo uniformismo religioso não era apenas exclusivo da Espanha católica, a França perseguia os huguenotes (protestantes franceses), a Inglaterra caçava católicos e o Sacro Império Romano-Germânico estava envolto por guerras religiosas.

Em Portugal, desde o século XIII, os muçulmanos viviam em lugares conhecidos como mourarías, como ainda é chamado o bairro próximo ao Castelo de São Jorge em Lisboa. Os judeus também possuíam bairros onde poderiam construir suas casas. Em 1496, o rei de Portugal, D. Manuel, ordenou a expulsão de todos os hereges judeus e muçulmanos. Entretanto, alguns autores defendem que não ocorreu de fato uma expulsão dos “hereges” e que em meados do século XVI ainda havia muçulmanos e judeus vivendo em Portugal. O destino dos judeus portugueses parece ter sido o mesmo dos judeus espanhóis que emigraram para o Magrebe e para o Império Otomano. Muitos deles também fugiram para a América, para cidades italianas e para Amsterdam onde se tornaram financiadores e credores dos colonizadores do Novo Mundo.

Os judeus sefarditas no Magrebe.

Os judeus junto aos fenícios foram os primeiros povos não-berberes a se estabelecerem no Magrebe. No período romano há relatos que judeus viviam em Volubilis, uma cidade romana a 35 km de Meknés, onde foram encontrados candelabros e túmulos judeus.


Foto: Volubilis (Marrocos).

Fonte: Diogo Farias.


Com a chegada dos conquistadores árabes, os judeus serviram os governantes muçulmanos como intermediários entre a autoridade real e a população. Os sultões otomanos acolheram a maioria dos judeus que fugiram da Península Ibérica no final do século XV, estes integraram a burocracia otomana, tornaram-se agentes comerciais, financeiros e destacaram-se em diferentes ramos da ciência. Mas, parece que em nenhum outro lugar do Mundo Islâmico os cortesãos judeus foram tão importantes quanto no Marrocos, porque no Império Otomano eles tinham que competir com um número grande de cristãos para ocupar cargos na burocracia, fato que não ocorria na mesma intensidade no Magrebe. A dinastia berbere Merínida (1215-1465), que se estabeleceu em Fez no século XIII, tinha dificuldades de se legitimar e sofria oposição de muitos muçulmanos, assim recrutava freqüentemente judeus e outros estrangeiros para serví-los. O emprego de judeus não era uma atitude benevolente, mas sim uma necessidade. Neste contexto, intensificou-se a hostilidade da população muçulmana em relação aos judeus que trabalhavam para os governantes merínidas. Em Fez, havia um importante mellah (bairro judeu), onde além dos serviços burocráticos seus moradores estavam ligados ao comércio do ouro e da prata. Posteriormente, os judeus de Fez mudaram-se para Casablanca ou migraram para o estrangeiro, sobretudo para Israel.

Em 1492-97, sucessivas ondas de megorashim (exilados judeus) portugueses e espanhóis chegaram, temporariamente ou permanentemente, ao Magrebe. Eles se juntaram aos toshabim (os judeus que já viviam no Magrebe), que possuíam algumas visões conflitantes em relação à liturgia e às leis que regiam o abatimento dos animais para o consumo.

A dinastia Alaoui (1615- ) foi marcada pelo auge da cooperação entre os judeus e os sultões marroquinos. No final do XVIII, os mercadores judeus também ajudaram a consolidar a dinastia, cujo poder se baseava no comércio, especialmente no porto de Essaouira. Tendo prosperado nos séculos XVIII e XIX, a comunidade judaica em Essaouira veio a deter uma importante posição econômica na cidade e os joalheiros judeus ganharam grande notoriedade. Entre 1830 e o início do domínio colonial francês em 1912, a soberania do Marrocos foi desafiada pela intervenção européia. A elite judaica passou a cultivar relações com os europeus e muitos deles tornaram-se sócios dos estrangeiros, porém uma parte da comunidade ainda exercia importantes funções sob o comando do sultão.


Foto: Medina de Essaouira (Marrocos).

Fonte: Diogo Farias.


Os judeus sefarditas do Marrocos falavam o hakitía que difere do ladino falado na Turquia e no Oriente Médio por este último ter incorporado algumas expressões das línguas turca e grega. Os judeus megorashim, falantes do hakitía, encontraram uma maioria de judeus toshabim que falavam o árabe ou línguas berberes. Muitos megorashim estabeleceram-se principalmente em Tânger, Tetuan, Arzila, Chaouen, Marrakech, Rabat, Fez e Casablanca. Após 1940, uma nova onda migratória de judeus chegou ao Marrocos vindos da Bélgica e da França fugindo das perseguições sofridas durante a II Guerra Mundial. Após a independência do Marrocos em 1956, muitos judeus emigram principalmente para Israel. Hoje, calcula-se que cerca de 6000 judeus vivem no Marrocos e muitos deles ocupam cargos importantes na política e na economia do país.

Em relação aos muçulmanos da Península Ibérica, muitos abandonaram o al-Andalus durante o processo conhecido como Reconquista e buscaram refúgio no Magrebe e no Oriente Médio. Os que ficaram passaram por um processo de aculturação onde foram convertidos e incorporados à sociedade ibérica com o passar dos anos. Os que emigravam passaram a viver em territórios controlados por muçulmanos nos quais, apesar de serem considerados refugiados andalusís, tiveram menores dificuldades em sua adaptação. Por outro lado, os judeus fugiram da Península Ibérica e emigraram para regiões em que continuavam a ser uma minoria e como é comum entre as comunidades judaicas mantiveram sua identidade, costumes e laços com os judeus que possuíam a mesma origem que eles.

Alguns monumentos e bairros no Marrocos são atribuídos aos refugiados muçulmanos andalusis, como por exemplo a Muralha Andalusi de Rabat, a Mesquita Andalusi de Fez e os bairro andalusi de Chaouen. Existe ainda a possibilidade de alguns muçulmanos convertidos ao cristianismo terem vindo ao Brasil, junto à eles podemos incluir escravos africanos muçulmanos – que tinham origem na África subsaariana. Estes escravos foram responsáveis pela Revolta dos Malês na Bahía em 1835. O costume de comer cuscuz foi trazido por portugueses e escravos africanos ao Brasil que aqui passou por um processo de adaptação no qual foi abandonada a sêmola de trigo e utilizada a farinha de milho ou mandioca. O cuscuz de sêmola de trigo chegou a fazer parte da ementa da Corte portuguesa até o reinado de Felipe IV (1605-1665), para extirguir-se do elenco culinário peninsular, excomungado assim como tentaram com a berinjela, apesar de não obterem sucesso com este último, no esforço de aniquilar qualquer resquício da presença do Islã na então católica Peninsula Ibérica.


Foto: Bab El-Hab da Muralha Andalusi (Rabat, Marrocos).

Fonte: Diogo Farias.

Bibliografia:

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NICOLLE, David. Atlas Histórico del Mundo Islámico (Madri: Edimat Libros, 2005).

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REILLY, Bernard. Cristãos e Muçulmanos: A Luta pela Península Ibérica (Lisboa: Editorial Teorema, 1996).

SCHOETER, Daniel. The Sultan's Jew: Morocco and the Sephardi World (Stanford: Stanford University Press, 2002).

SOYER, François. The Persecution of the Jews and Muslims of Portugal. King Manuel I and the End of Religious Tolerance (1496-7) (Leiden: Brill, 2007).

WHEATCROFT, Andrew. Infiéis: O Conflito entre a Cristandade e o Islã, 638-2002 (Rio de Janeiro: Imago Editora, 2004).

VALLVÉ, Joaquín. La Conquista y sus Itinerarios (http://www.almendron.com/historia/medieval/invasion_arabe/ia.htm).

ZAFRANI, Haim. Two Thousand of Jewish Life in Morocco (Jersey City: KTAV, 2005).