segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Os sabores do al-Andalus

Estes blogueiros colaboraram com a edição número 73 - outubro de 2011 - da Revista de História da Blibioteca Nacional com o artigo entitulado "Os sabores do al-Andalus". Ao clicar na imagem abaixo vocês podem visualizar a introdução do artigo.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O conflito entre Camboja e Tailândia

 Imagem: um soldado tailandês faz guarda no templo Ta Moan.
Fonte: khmerization.blogspot.com (Tawatchai Kemgumnerd).

O conflito ao longo da fronteira entre o Camboja e a Tailândia continua depois que dois acordos de cessar-fogo foram desrespeitados em 22 de abril,  desde então cerca de 17 pessoas foram mortas. A disputa gira em torno do domínio de uma área próxima às ruínas de antigos templos hindus. Cerca de 50 mil pessoas dos dois lados da fronteira fugiram para abrigos temporários, enquanto tropas tailandesas e cambojanas continuam patrulhando a região. Não se espera que estas escaramuças conduzam a um conflito em larga escala, mas a disputa já fechou o comércio entre fronteiras e causou nervosismo entre as populações dos dois países.

Imagem: Tailândia e Camboja disputam o domínio sobre o templo do século XIII Ta Muen Thom, que se localiza na fronteira entre os dois países. Este conflito fez o Departamento de Artes da Tailandês abandonar o sítio em 2001.
Fonte: khmerization.blogspot.com
Os militares tailandeses afirmam que sua luta tem o objetivo de impedir a tentativa do Camboja em dominar as ruínas dos templos Ta Krabey e Ta Moan. Ainda segundo eles, o Camboja quer expandir seu controle sobre a área após as conquistas de 1962, quando a Corte Internacional de Justiça em Haia concedeu ao país o domínio sobre as ruínas de Preah Vihear, a cerca de 200 quilômetros a leste do local dos conflitos atuais.

Imagem: Áreas de conflito entre Camboja e Tailândia
 Fonte: www.tamoan.net
Ambos os lados trocaram acusações de agressão tornando quase impossível saber quem atirou primeiro. Em fevereiro, quatro dias de conflitos perto de Preah Vihear matou um total de dez soldados antes das hostilidades cessarem. O Secretário Geral da ONU Ban Ki-moon e a ASEAN - da qual o Camboja e a Tailândia são membros - pediram para os dois países negociarem um cessar-fogo, mas seus líderes utilizam o conflito para cultivar um sentimento nacionalista entre a sua população e solidificar suas bases de poder. O Camboja pretende internacionalizar o problema e pedir para a ONU e a Indonésia intermediarem o conflito, em contrapartida, a Tailândia prefere uma negociação bilateral.
Durante este fim de semana, os cambojanos afirmaram que tropas tailandesas lançaram projéteis de 75mm e 105mm "carregados com gáses venenosos", mas não há evidências do ocorrido e Bangkok nega esta alegação. Em fevereiro, a Tailândia negou ter lançado bombas de fragmentação contra o Camboja, mas posteriormente admitiu o seu uso. Em compensação, a Tailândia acusa o Camboja de utilizar civis como escudos humanos em áreas militarizadas. Os EUA mantêm boas relações com os dois países e não veem necessidade de intervirem no conflito. 
A Tailândia sentiu-se provocada pelo plano cambojano de explorar o potencial turístico das ruínas de Preah Vihear, um templo hindu do século XI. Em 2008, este templo foi declarado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.  Através de seu novo status Preah Vihear pode se tornar uma atração turística economicamente valiosa para o Camboja, mas para explorar esse potencial há a necessidade de reformar o caminho até a falésia onde se situa o templo. O problema é que esta estrada atravessa o território disputado pelos dois países.

Imagem: Área contestada pela Tailândia 
Fonte: www.preah-vihear.com

O conflito coincide com o temor da imprensa e dos políticos de oposição tailandeses de que os militares do país estajam preparando um  putsch para instalar um novo regime fantoche. Estes militares receiam um possível retorno do antigo primeiro-ministro Thaksin Shinawatra, que foi retirado do cargo num sangrento golpe em 2006. Thaksin está exilado em Dubai para escapar de uma sentença de dois anos de prisão por corrupção durante sua administração. Após a queda de Thaksin, o primeiro-ministro cambojano Hun Sen o apontou como seu conselheiro econômico especial, cargo que foi recusado posteriormente.

 Imagem: soldados cambojanos caminham durante patrulha (Preah Vihear, 2008).
Fonte: ki-media.blogspot.com
Um ano atrás, cerca de dez mil "camisas vermelhas", membros da Frente Nacional Unida da Democracia contra a Ditadura (UDD), realizaram uma insurreição que durou nove semanas em Bangkok, eles protestaram pela realização de eleições livres com o objetivo de trazer de volta Thaksin ao poder. Segundo a organização, o governo de Abhisit Vejjajiva tomou o poder de forma "ilegítima", apoiado pelo exército e pelo poder judiciário. Os camisas vermelhas foram brutalmente reprimidos pelo exército, num conflito que vitimaram 91 pessoas, a maioria delas civis. Muitos líderes camisas vermelhas fugiram para o Camboja. 
Desde a criação da Monarquia Constitucional em 1932, a Tailândia enfrenta um longo ciclo de golpes realizados por seus militares e chegou a ter neste período 16 constituições, sendo que a atual está em vigor desde 2007 e é alvo de crítica dos camisas vermelhas.
Abhisit, que assumiu o cargo de primeiro-ministro em dezembro de 2008, desfruta de um forte apoio militar e seu governo realizou uma renovação dos equipamentos militares ao comprar uma dúzia de aeronaves suecas Gripen, seis submarinos usados alemães e diversos blindados ucranianos. Em 2009, de acordo com o Stockholm International Peace Institute, os gastos militares tailandeses chegaram a 2,9 bilhões de dólares enquanto o Camboja gastou “apenas” 191 milhões de dólares. Abhisit afirmou que pretende realizar eleições nacionais em junho ou julho deste ano, mas muitos analistas desconfiam que os militares não queiram realizá-las, devido à preocupação de que um governo pró-Thaksin possa assumir o poder. A oposição tailandesa já afirma que se vencerem as eleições irão fazer um acordo com o Camboja, destino de muitos exilados políticos tailandeses.
A Tailândia sempre exerceu uma pressão histórica sobre o Camboja, sendo que entre os séculos XVIII e XIX muitos monarcas cambojanos eram vassalos dos reis do Sião (antigo nome da Tailândia). O conflito territorial agravou-se com o domínio colonial francês sobre o Camboja. Estas antigas rivalidades inflamam ainda mais a tensão na fronteira dos dois países. A situação instável continua sem um debate decisivo sobre a sua resolução e ainda podem ocorrer novos conflitos. O contexto político interno tailandês tornou o caso ainda mais importante para o orgulho dos militares do país e da legitimidade do regime atual, dificultando a realização de um acordo.  
Do lado cambojano, Hun Sen utiliza o nacionalismo para promover seu regime e aproveita a situação para explorar um vizinho que enfrenta diversas facções políticas. Hun Sen vê neste conflito uma chance de marginalizar seus opositores. Em 2008, quando Preah Vihear tornou-se Patrimônio da Humanidade, a decisão foi festejada com um concerto gratuito no Estádio Olímpico de Phnom Penh. Com o sentimento nacionalista revigorado, o Partido Popular Cambojano (PPC) conseguiu 90 das 123 cadeiras da Assembléia Nacional, nas eleições de 2008. Além de explorar o orgulho patriota para vencer as eleições, Hun Sen utiliza o conflito para fazer com que seu filho Hun Manet seja seu sucessor como próximo primeiro-ministro do país.
Hun Manet se formou em 1999 na Academia Militar de West Point e ocupa a posição de vice-comandante das Forças Armadas Reais e de diretor do Ministério da Defesa, onde controla um departamento de contra-terrorismo sustentado pelos EUA. A carreira de seu pai, que fora comandante de um regimento do Khmer Vermelho na década de 1970, demonstra que a experiência militar pode contribuir em sua escalada ao poder.
O conflito com a Tailândia ajuda a mascarar os conflitos internos cambojanos, como acusações de corrupção contra alguns membros do governo e as incursões realizadas pelos vietnamitas na fronteira oeste do país. Atualmente, a oposição está fragmentada e poucos duvidam que o PPC vencerá  as eleições para os conselhos comunais no ano que vem. Neste contexto, o conflito passou a representar mais o debate entre as dinâmicas internas de cada país do que uma escalada para uma guerra em grande escala entre os dois Estados, porém esta possibilidade não pode ser totalmente descartada.
 
Imagem: Preah Vihear
Fonte:www.doismb.com.br

terça-feira, 26 de abril de 2011

Carlos


A produção franco-germana "Carlos", com direção de Olivier Assayas, é dividida em três partes com cerca de 1 hora e 40 minutos cada e retrata a vida do terrorista venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido como Carlos, o Chacal. Este terrorista lutou a favor da revolução internacional comunista, dos países subdesenvolvidos e pela causa da Palestina nas décadas de 1970 e 1980. Carlos é responsável por uma série de atividades terroristas, entre elas um ataque contra uma reunião da cúpula da OPEP em 1975, que acabou com o sequestro de 42 pessoas. Provavelmente até 2001, ou seja, quando dois aviões atacaram o World Trade Center, Carlos foi o terrorista que mais atraiu a atenção da midía no mundo. Em 1994, foi preso no Sudão e até hoje cumpre pena numa prisão francesa pelo assassinato de dois policiais franceses.
O primeiro episódio da minissérie inicia com Carlos vivendo em Paris (com algumas passagens em Londres) após uma conturbada experiência em Moscou, quando não conseguiu completar seus estudos na superpotência comunista.São retratados os anos anteriores ao ataque contra a OPEP em 1975, quando Carlos se envolveu com grupos revolucionários como o Exército Vermelho, uma organização marxista japonesa, e as Células Revolucionárias, um grupo marxista alemão.

Foto: Carlos em ação durante o ataque contra a reunião da cúpula da OPEP em Viena (1975).

O segundo episódio começa com o ataque de Carlos contra a reunião da OPEP em Viena e aprofunda a relação do terrorista com agentes da KGB, do Iraque de Saddam Hussein e da Síria de Hafiz al-Assad (o pai de Bashar). A terceira parte demonstra como Carlos teve dificuldades em se adaptar no novo contexto mundial após a queda do bloco socialista. É neste ponto que  a história do terrorista venezuelano torna-se relativamente mais monótona mas extremamente interessante  ao demonstrar as mudanças ocorridas na ordem mundial pós-1989.
Quais foram estas mudanças?
A mais evidente é o fim da Guerra Fria e a queda do modelo socialista soviético, um ideal que moveu sonhos e pesadelos de muitos, responsável por uma das maiores atrocidades realizadas pelo homem. O objetivo era atingir o ideal da justiça social, de igualdade entre os povos, o fim do Estado e da miséria. Porém, o sonho foi anulado pela corrupção, histeria, pressão psicológica e social, privilégios que mantinham o poder de uma casta e muitas decisões equivocadas.
A psicologia de Carlos, complexa em sua natureza, carregava em seu seio o estigma que impediu este sonho se tornar realidade. Era um defensor dos povos oprimidos e explorados, mas o seu método era o terrorismo. Lutava pela igualdade social, entretanto suas táticas se mostravam custosas e seus "mecenas" permitiam que o terrorista usufruísse um padrão de vida relativamente alto.O filme de Olivier Assayas retrata um Carlos que transita entre o ativista revolucionário sonhador e um playboy violento e galanteador.

Fotos: Carlos boêmio e conquistador.

Carlos tinha seus ideais e viu seus serviços perderem espaço em um mundo em mudanças. Estas começam ser apresentadas no filme quando é expeculado o assassinato do presidente egípcio Anwar al-Sadat, que assinou um tratado de paz com Israel em 1979 e aproximou-se dos EUA. Sadat foi assassinado em 1981 e o Chacal não esteve envolvido nesta operação. Os líderes do nacionalismo árabe eram seculares que defendiam um Estado laico, possuíam um discurso que se assemelhava à retórica marxista e defendiam uma política de independência em relação às duas potências mundiais, EUA e URSS, porém na prática mantinham relações com o bloco socialista através de acordos comerciais, financeiros e de cooperação militar. O filme ilustra este contexto através da atuação de revolucionários marxistas em operações pela causa da Palestina, contrabando de armas e as relações da KGB com diversos ditadores árabes.

Foto: Carlos, o Chacal.
Com as mudanças pós-1989, os líderes nacionalistas iniciaram uma aproximação com a Europa Ocidental e os EUA, ainda hoje está fresca na nossa memória as imagens de Kaddafi cumprimentando os líderes  destes Estados ou a ajuda bilionária que os norte-americanos enviavam para o Egito de Mubarak. Kaddafi outrora acusado de financiar atentados terroristas passou a vender gás e petróleo para a Europa e entre seus  "antigos" sócios estão Silvio Berlusconi e a família Agnelli dona da FIAT. Mas nem todos estes líderes nacionalistas passaram a ter relações harmoniosas com a Europa e os EUA, como o  iraquiano Saddam Hussein e a relação cheia de avanços e retrocessos com a família Assad. Carlos acabou por ficar cada vez mais isolado devido a dificuldade de continuar a seguir os seus ideais e "vender" seus serviços na nova conjuntura internacional.
O Oriente Médio nestas últimas três décadas viu a expansão de práticas religiosas mais ortodoxas - não estou falando de violência e nem de terrorismo - como por exemplo o aumento do número de mulheres usando o niqab e o crescimento de partidos políticos aliados à movimentos religiosos. Isto não quer dizer que a sociedade foi dominada por estes grupos.
Os já desacreditados nacionalistas seculares estão sendo desafiados  pelo povo - alguns já caíram - e os partidos de esquerda árabes não possuem mais a força que tinham antigamente.  Entretanto, a situação é mais complexa e não se aplica a todas as outras regiões, nas revoltas populares o caráter religioso não é protagonista, sua força motriz é a crise econômica e a necessidade de reformas políticas. Mesmo no Bahrain, uma monarquia, onde há um certo conflito religioso entre uma elite sunita e uma maioria xiita, entre os manifestantes há vários sunitas, o que demonstra que não se deve exacerbar seu caráter religioso.

Foto: Magadalena Kopp, ex-esposa de Carlos.

Mas ao analisar o terrorismo em si, uma consequência direta da queda do bloco socialista foi o declínio da atividade de grupos terroristas de esquerda, com seus militantes que não eram mártires. Junto a este fenômeno viu-se o crescimento das atividades de grupos terroristas islâmicos, ou pelo menos de seu impacto na mídia "ocidental", e do martírio entre os seus militantes. Carlos era um terrorista pertencente a uma "velha escola" que posteriormente se converteu ao Islã e na prisão escreveu um livro chamado Revolucionary Islam, onde defende os ataques de Osama bin Laden ao WTC e a resistência de Saddam Hussein contra a invasão norte-americana do Iraque. A conversão de Carlos ao Islã é algo a ser investigado e discutido: trata-se de uma "adaptação" aos novos tempos, uma escolha religiosa ou algo ainda mais complexo do que estas duas alternativas?
Em relação a produção, orçada em cerca de 18 milhões de dólares, chega a surpreender pela sua qualidade, mesmo se tratando de uma produção made for tv. O também venezuelano Édgar Ramírez que interpreta o papel principal, não compromete e carrega de forma segura a complexidade do papel - lembrando que ele interpreta Carlos por mais de cinco horas e tem que se expressar em diversas línguas. A série chegou a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Minissérie em 2011 e Carlos move um processo contra os responsáveis pela sua produção.

Foto: Carlos, o Chacal.

terça-feira, 19 de abril de 2011

"Do al-Andalus ao Magrebe": os judeus sefarditas não emigraram apenas para os territórios otomanos, muitos foram para o Magrebe

O legado do al-Andalus e a comunidade judaica

O domínio islâmico da Península Ibérica durou cerca de 500 anos desde a chegada de um exército liderado pelo general berbere Tariq em 711 até a batalha de Las Navas de Tolosa em 1212. Após esta vitória das forças cristãs, Granada permaneceu como o último bastião do domínio islâmico até sua tomada pelos reis católicos Fernando e Isabel em 1492, mesmo ano em que Cristóvão Colombo chegou a América. Os árabes chamavam a Península Ibérica de al-Andalus e muitos pensaram que este nome estava ligado com a passagem dos “bárbaros” vândalos pela região antes de organizarem um reino no Norte da África. Porém, segundo Joaquín Vallvé, da Universidade Complutense de Madrid, Jazīrat al-Andalus é uma tradução pura e simples de "Ilha do Atlântico" ou Atlântida, resultado de uma transmissão literária do mito de Platão.

Quando chegaram a Península Ibérica, os árabes encontraram a agricultura da região em declínio e tiveram que implantar novas técnicas de cultivo e irrigação do solo, mas também reintroduziram, aperfeiçoaram e expandiram antigas técnicas romanas. O mesmo ocorreu com a introdução de novas culturas, como a cana-de-açúcar, e a reintrodução de alimentos e condimentos que haviam caído em desuso durante o período visigótico, como a utilização de algumas especiarias, por exemplo, o açafrão, cuja qualidade cultivada hoje na Espanha é reconhecida por chefs no mundo inteiro. Muitas das técnicas de irrigação e vegetais cultivados pelos muçulmanos no al-Andalus foram posteriormente utilizados por portugueses e espanhóis na colonização da América, a própria cana-de-açúcar trazida pelos árabes foi durante cerca de três séculos o principal produto explorado pelos colonizadores do Brasil.


Foto: Moinho da Albolafia (Córdoba, Espanha).

Fonte: Diogo Farias.


Os árabes colocaram o al-Andalus em contato com as caravanas comerciais que partiam da China e Índia e cruzavam toda a Ásia Central, Oriente Médio e Norte da África, formando uma abastada comunidade mercantil nas medinas de Córdoba, Sevilha, Valência e Múrcia. Estradas, moinhos, diques, pontes, muralhas, mesquitas, hospitais, estabelecimentos destinados a acolher viajantes (khan) e palácios foram construídos. Entre os legados arquitetônicos do período mais conhecidos estão o Castelo de São Jorge em Lisboa, a Grande Mesquita de Córdoba, que hoje abriga uma catedral cristã, a Giralda e o pátio da Catedral de Sevilha que pertenciam à antiga mesquita da cidade e a Alhambra, a cidadela dos Nasridas de Granada.

O al-Andalus tornou-se um centro cultural de extrema importância no Mundo Islâmico, a sua localização periférica forçou os andalusis desenvolverem um patrimônio cultural próprio que deixou um legado incalculável tanto para os povos ibéricos quanto para a civilização árabe. Sevilha e Córdoba eram os centros culturais da península, que viram surgir juristas, poetas, médicos, geógrafos e historiadores notáveis, sendo que alguns deles eram judeus como Ibn Janāh e Ibn Maymūn (Maimônides). Os árabes tiveram um papel importante na preservação e no estudo da cultura greco-latina tão importante para formação da identidade dos europeus e do “mundo ocidental”. No campo lingüístico, após o latim, o árabe foi a língua que mais emprestou vocábulos para o português. Os árabes também eram exímios navegadores e transmitiram aos portugueses algumas invenções chinesas como a bússola, o astrolábio e a pólvora.

Quando os muçulmanos cruzaram o estreito de Gilbraltar para conquistar a Península Ibérica, os judeus já viviam na península. Eles acolheram os recém-chegados árabes com entusiasmo, por causa da perseguição que sofriam durante o período visigótico. Sob o domínio dos muçulmanos, cristãos e judeus tinham liberdade para praticar suas religiões, pois eram considerados “Povos do Livro” (ahl al-kitāb), por venerarem Abraão e outros profetas, que segundo a tradição islâmica, foram precursores de Muhammad. Em troca da liberdade de culto deveriam pagar um imposto individual chamado jizya. Judeus viviam em bairros próprios, geralmente no interior das muralhas das medinas árabes, onde poderiam construir suas sinagogas, como a que hoje se encontra na judería de Córdoba. Os judeus atuavam como mercadores, agentes financeiros, cobradores de impostos e tinham livre acesso às funções da burocracia estatal. Apesar da liberdade de culto, houve períodos em que cristãos e judeus foram perseguidos, mas estes parecem ter sido exceção e geralmente estavam ligados a um contexto de crises políticas, econômicas e com o recrudescimento da ortodoxia religiosa durante as dinastias Almorávida (1040-1147) e Almóada (1130-1269).


Foto: detalhe da decoraçãoda sinagoga da judería de Córdoba.

Fonte: Diogo Farias.


A emigração dos judeus e dos muçulmanos.

No século XIII, os reinos cristãos passaram a controlar a maior parte do território ibérico, através de uma longa luta conhecida como Reconquista que somente concretizaria o domínio cristão da península com a conquista de Granada em 1492. Apesar da quantidade de mouros (mudéjares) exceder o número de judeus na Espanha cristã, foram os judeus e os “cristão-novos” (judeus convertidos ao cristianismo) que por todo o século XV foram alvo primário da legislação de pureza social e mais tarde da Santa Inquisição. Isso se explica pelo fato de as duas comunidades serem muito diferentes em sua distribuição e função. A maioria dos muçulmanos trabalhava no campo ao passo que os judeus concentravam-se nas cidades, onde tensões ligadas às disputas comerciais poderiam facilmente gerar conflitos. Contribuíram ainda contra a imagem dos judeus, o fato deles serem responsabilizados pela morte de Cristo e por serem encarregados de coletar os impostos. Os muçulmanos eram considerados um inimigo externo, admirados como grandes combatentes, porém infiéis seguidores do "anticristo" Muhammad. Desde o início do século XV, ataques cada vez mais violentos levaram judeus a aceitarem o batismo.


Fonte: NICOLLE, D. Atlas Histórico del Mundo Islámico. Madrid: EDIMAT Libros, 2005, p. 105.


Em 31 de março de 1492, foi declarada a expulsão definitiva dos judeus crentes da Espanha, porém uma capitulação assinada em 1491 já previa a “transferência dos judeus de Granada para o Norte da África”, sob a alegação de que a presença de judeus corromperia a re-cristianização da península, entretanto a opção de conversão continuava aberta. Cerca de 50 mil a 80 mil judeus teriam sido expulsos e fugido para o Marrocos, Península Itália e Império Otomano.

Em 1502, os reis católicos queriam acelerar o processo de conversão de Granada, assim foi estipulado que todos os muçulmanos tinham de escolher entre o batismo ou deixar a Espanha. Durante o século XIII, a maioria dos muçulmanos que viviam na Península Ibérica havia emigrado para o Magrebe ou Oriente Médio, porém muitos dos que permaneceram em Granada já haviam emigrado para as regiões citadas na época de sua tomada. Entretanto, houve muitos que fugiram para Aragão e Navarra onde ainda poderiam ser muçulmanos. Foi apenas o neto de Isabel, Carlos V, que ampliou a fórmula do “batismo ou expulsão” para todos os reinos espanhóis. O último julgamento de muçulmanos ocorreu em Cartagena em 1769, onde um grupo foi descoberto no interior de uma mesquita secreta. No século XVI, a busca pelo uniformismo religioso não era apenas exclusivo da Espanha católica, a França perseguia os huguenotes (protestantes franceses), a Inglaterra caçava católicos e o Sacro Império Romano-Germânico estava envolto por guerras religiosas.

Em Portugal, desde o século XIII, os muçulmanos viviam em lugares conhecidos como mourarías, como ainda é chamado o bairro próximo ao Castelo de São Jorge em Lisboa. Os judeus também possuíam bairros onde poderiam construir suas casas. Em 1496, o rei de Portugal, D. Manuel, ordenou a expulsão de todos os hereges judeus e muçulmanos. Entretanto, alguns autores defendem que não ocorreu de fato uma expulsão dos “hereges” e que em meados do século XVI ainda havia muçulmanos e judeus vivendo em Portugal. O destino dos judeus portugueses parece ter sido o mesmo dos judeus espanhóis que emigraram para o Magrebe e para o Império Otomano. Muitos deles também fugiram para a América, para cidades italianas e para Amsterdam onde se tornaram financiadores e credores dos colonizadores do Novo Mundo.

Os judeus sefarditas no Magrebe.

Os judeus junto aos fenícios foram os primeiros povos não-berberes a se estabelecerem no Magrebe. No período romano há relatos que judeus viviam em Volubilis, uma cidade romana a 35 km de Meknés, onde foram encontrados candelabros e túmulos judeus.


Foto: Volubilis (Marrocos).

Fonte: Diogo Farias.


Com a chegada dos conquistadores árabes, os judeus serviram os governantes muçulmanos como intermediários entre a autoridade real e a população. Os sultões otomanos acolheram a maioria dos judeus que fugiram da Península Ibérica no final do século XV, estes integraram a burocracia otomana, tornaram-se agentes comerciais, financeiros e destacaram-se em diferentes ramos da ciência. Mas, parece que em nenhum outro lugar do Mundo Islâmico os cortesãos judeus foram tão importantes quanto no Marrocos, porque no Império Otomano eles tinham que competir com um número grande de cristãos para ocupar cargos na burocracia, fato que não ocorria na mesma intensidade no Magrebe. A dinastia berbere Merínida (1215-1465), que se estabeleceu em Fez no século XIII, tinha dificuldades de se legitimar e sofria oposição de muitos muçulmanos, assim recrutava freqüentemente judeus e outros estrangeiros para serví-los. O emprego de judeus não era uma atitude benevolente, mas sim uma necessidade. Neste contexto, intensificou-se a hostilidade da população muçulmana em relação aos judeus que trabalhavam para os governantes merínidas. Em Fez, havia um importante mellah (bairro judeu), onde além dos serviços burocráticos seus moradores estavam ligados ao comércio do ouro e da prata. Posteriormente, os judeus de Fez mudaram-se para Casablanca ou migraram para o estrangeiro, sobretudo para Israel.

Em 1492-97, sucessivas ondas de megorashim (exilados judeus) portugueses e espanhóis chegaram, temporariamente ou permanentemente, ao Magrebe. Eles se juntaram aos toshabim (os judeus que já viviam no Magrebe), que possuíam algumas visões conflitantes em relação à liturgia e às leis que regiam o abatimento dos animais para o consumo.

A dinastia Alaoui (1615- ) foi marcada pelo auge da cooperação entre os judeus e os sultões marroquinos. No final do XVIII, os mercadores judeus também ajudaram a consolidar a dinastia, cujo poder se baseava no comércio, especialmente no porto de Essaouira. Tendo prosperado nos séculos XVIII e XIX, a comunidade judaica em Essaouira veio a deter uma importante posição econômica na cidade e os joalheiros judeus ganharam grande notoriedade. Entre 1830 e o início do domínio colonial francês em 1912, a soberania do Marrocos foi desafiada pela intervenção européia. A elite judaica passou a cultivar relações com os europeus e muitos deles tornaram-se sócios dos estrangeiros, porém uma parte da comunidade ainda exercia importantes funções sob o comando do sultão.


Foto: Medina de Essaouira (Marrocos).

Fonte: Diogo Farias.


Os judeus sefarditas do Marrocos falavam o hakitía que difere do ladino falado na Turquia e no Oriente Médio por este último ter incorporado algumas expressões das línguas turca e grega. Os judeus megorashim, falantes do hakitía, encontraram uma maioria de judeus toshabim que falavam o árabe ou línguas berberes. Muitos megorashim estabeleceram-se principalmente em Tânger, Tetuan, Arzila, Chaouen, Marrakech, Rabat, Fez e Casablanca. Após 1940, uma nova onda migratória de judeus chegou ao Marrocos vindos da Bélgica e da França fugindo das perseguições sofridas durante a II Guerra Mundial. Após a independência do Marrocos em 1956, muitos judeus emigram principalmente para Israel. Hoje, calcula-se que cerca de 6000 judeus vivem no Marrocos e muitos deles ocupam cargos importantes na política e na economia do país.

Em relação aos muçulmanos da Península Ibérica, muitos abandonaram o al-Andalus durante o processo conhecido como Reconquista e buscaram refúgio no Magrebe e no Oriente Médio. Os que ficaram passaram por um processo de aculturação onde foram convertidos e incorporados à sociedade ibérica com o passar dos anos. Os que emigravam passaram a viver em territórios controlados por muçulmanos nos quais, apesar de serem considerados refugiados andalusís, tiveram menores dificuldades em sua adaptação. Por outro lado, os judeus fugiram da Península Ibérica e emigraram para regiões em que continuavam a ser uma minoria e como é comum entre as comunidades judaicas mantiveram sua identidade, costumes e laços com os judeus que possuíam a mesma origem que eles.

Alguns monumentos e bairros no Marrocos são atribuídos aos refugiados muçulmanos andalusis, como por exemplo a Muralha Andalusi de Rabat, a Mesquita Andalusi de Fez e os bairro andalusi de Chaouen. Existe ainda a possibilidade de alguns muçulmanos convertidos ao cristianismo terem vindo ao Brasil, junto à eles podemos incluir escravos africanos muçulmanos – que tinham origem na África subsaariana. Estes escravos foram responsáveis pela Revolta dos Malês na Bahía em 1835. O costume de comer cuscuz foi trazido por portugueses e escravos africanos ao Brasil que aqui passou por um processo de adaptação no qual foi abandonada a sêmola de trigo e utilizada a farinha de milho ou mandioca. O cuscuz de sêmola de trigo chegou a fazer parte da ementa da Corte portuguesa até o reinado de Felipe IV (1605-1665), para extirguir-se do elenco culinário peninsular, excomungado assim como tentaram com a berinjela, apesar de não obterem sucesso com este último, no esforço de aniquilar qualquer resquício da presença do Islã na então católica Peninsula Ibérica.


Foto: Bab El-Hab da Muralha Andalusi (Rabat, Marrocos).

Fonte: Diogo Farias.

Bibliografia:

CASCUDO, C. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda, 2007.

KENNEDY, Hugh. Os Muçulmanos na Península Ibérica: História Política do al-Andalus (Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1999).

NICOLLE, David. Atlas Histórico del Mundo Islámico (Madri: Edimat Libros, 2005).

PLAJA, Fernando Díaz. A Vida Quotidiana na Espanha Muçulmana (Lisboa: Editorial Notícias, 1995).

REILLY, Bernard. Cristãos e Muçulmanos: A Luta pela Península Ibérica (Lisboa: Editorial Teorema, 1996).

SCHOETER, Daniel. The Sultan's Jew: Morocco and the Sephardi World (Stanford: Stanford University Press, 2002).

SOYER, François. The Persecution of the Jews and Muslims of Portugal. King Manuel I and the End of Religious Tolerance (1496-7) (Leiden: Brill, 2007).

WHEATCROFT, Andrew. Infiéis: O Conflito entre a Cristandade e o Islã, 638-2002 (Rio de Janeiro: Imago Editora, 2004).

VALLVÉ, Joaquín. La Conquista y sus Itinerarios (http://www.almendron.com/historia/medieval/invasion_arabe/ia.htm).

ZAFRANI, Haim. Two Thousand of Jewish Life in Morocco (Jersey City: KTAV, 2005).

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A conquista do al-Andalus


Imagem: Estátua de Ṭāriḳ ibn Ziyād em Tétouan (Marrocos)

Fonte: www.skyscrapercity.com

As Fontes:

Estudar o período inicial da presença muçulmana na Península Ibérica é uma tarefa muito complicada, pois as diferentes fontes sobre este período trazem informações contraditórias; consequentemente, esta situação dificulta determinar precisamente as circunstâncias e o contexto da conquista muçulmana do al-Andalus.

A dificuldade em traçar a História da conquista do al-Andalus resulta, essencialmente, da ausência de textos contemporâneos, como também de relatos feitos num período relativamente próximo aos fatos descritos (com a exceção de duas fontes cristãs: a Chronica byzantia-arabica de 741 e a Continuatio Hispana de 754 – entretanto, estes textos são relativamente curtos). As fontes árabes mais antigas que chegaram até nós, o Futūḥ Miṣr do egípcio Ibn ʿAbd al-akam e o Taʾrīkh de Ibn Ḥabīb da edição de al-Māghamī, ambas do século IX, baseiam-se em lendas ou exageram algumas situações. As fontes disponíveis são geralmente trabalhos escritos muito tempo após a chegada do exército muçulmano na Península, o que cria a necessidade de justapor estes relatos, que não são uniformes e possuem procedências muito diversas, para, enfim, reconstruir o desenrolar dos fatos. Neste caso, dois textos anônimos são fundamentais para estudar o primeiro século da presença muçulmana no al-Andalus, o Akhbār madjmūʿa e o Fatḥ al-Andalus. Segundo Molina, a opnião dos estudiosos em relação a estes textos são divergentes: alguns acreditam que estes relatos se baseam numa antiga versão escrita das tradições orais, outros afirmam que estas são simples compilações tardias baseadas em textos mais antigos (P. Chameta, Invasión e islamización, 50; L. Molina, Los Akhbār madjmūʿa y la historiografía árabe sobre el período olmeya en al-Andalus, in al-Qanṭara, x <1989>, 513-543, e o Estudio desta edição do Fatḥ). Entretanto, apesar desta aparente desordem, alguns fatos podem ser reconstituídos de maneira satisfatória.

al-Andalus:

Segundo Joaquín Vallvé, o termo al-Andalus - grosso modo, utilizado pelos muçulmanos, principalmente durante o período medieval, para denominar a Península Ibérica - já aparece em tradições atribuídas à Muammad e em poesías árabes pré-islâmicas ou do início do período islâmico. Todas estas fontes são anteriores a 711 e, portanto, apontam à uma origem oriental que não tem nada a ver com a teoria que sustenta que o termo al-Andalus deriva dos vândalos, porque estes cruzaram a Península Ibérica a caminho da África em 429.

O nome al-Andalus aparece nestas fontes orientais e nas primeiras que narram a conquista muçulmana como nome de uma ilha, Djazīrat al-Andalus (Ilha al-Andalus), ou de um mar, Bar al-Andalus (Mar al-Andalus). Através da análise de fontes grecolatinas, árabes e romances, Vallvé acredita que Djazīrat al-Andalus é uma tradução pura e simples de "Ilha do Atlântico" ou Atlântida, resultado de uma transmissão literária do mito de Platão.

Aliado à transmissão do mito de Atlântida, os povos do Mediterrâneo oriental mantinham a crença de que haveria uma ilha, ou restos dela, além das Colunas de Hércules (Gibraltar). As fontes árabes do Norte da África e as fontes hispanoárabes identificam claramente o Bar al-Andalus com o Oceano Atlântico.

Antecedentes:

A Península Ibérica fora uma das regiões mais ricas e desenvolvidas do Império Romano Ocidental. Nos três séculos que antecederam a vinda dos muçulmanos, esta região tinha sido dominada por diversos povos de origem germânica, dentre estes, os que tiveram o maior sucesso em impor o seu domínio foram os visigodos.

A situação política da Península Ibérica do final do período visigótico (séculos V-VIII) era razoavelmente estável e, exceptuando uma pequena incursão bizantina contra Cartagena, durante dois séculos não se registrou qualquer invasão extrapeninsular. Por outro lado, havia muitas terras desocupadas e poucos povoados - estes eram relativamente pobres e humildes se comparados com o período romano. Os recursos agrícolas eram, em muitos casos, negligenciados ou subexplorados. Existiam também regiões, especialmente nas montanhas ao norte, onde viviam os bascos e os asturianos, que segundo Kennedy, eram povos totalmente independentes de qualquer forma de dominação e onde uma primitiva sociedade de montanha resistia vigorosamente a qualquer jugo exterior.

O Norte da África:

Imagem: A conquista do Norte da África - para uma melhor visualização, clique duas vezes no mapa
Fonte: NICOLLE, David, Atlas Histórico del Mundo Islámico (Madri: Edimat Libros, 2005).


A conquista da Península Ibérica pelos muçulmanos foi talvez inevitável desde o dia em que o general árabe, ʿUḳba b. Nāfiʿ, deteve-se nas praias do Atlântico, em 681. Segundo Wheatcroft, um tradicional relato dessa expedição informa que o comandante muçulmano entrou a cavalo na água, brandiu a espada em direção ao oceano vazio e gritou: “Deus é grande. Se este mar não detivesse meu avanço, eu continuaria a cavalgar até os reinos desconhecidos do Ocidente, pregando a unidade de Deus e passando a fio de espada as nações revoltosas que cultuem em qualquer outro deus que não Ele”. Assim, a expansão muçulmana deveria redirecionar a sua rota, desta forma a Península Ibérica passaria a ser um objetivo natural.

Antes da chegada dos muçulmanos, a região dos atuais Estados da Líbia, da Tunísia, da Argélia e do Marrocos estava ocupada por dois grupos: bizantinos e berberes. Os bizantinos detinham uma série de redutos na costa, onde os dois mais importantes eram Trípoli e Cartago. Na época de Justiniano (483-565), os bizantinos reconquistaram as terras que estavam sob domínio dos vandalos e organizaram um complexo sistema de defesas nas zonas meridionais das áreas povoadas, mas estas teriam sido abandonadas no século VII, quando se iniciaram os ataques muçulmanos.

Os berberes (berber/barbar) detinham o verdadeiro poder da região. Alguns berberes foram aculturados no mundo bizantino, muitos deles adotaram o cristianismo; porém a maioria daqueles que habitavam as regiões mais isoladas continuavam pagãos. Havia berberes que moravam em cidades, entretanto a maioria deles vivia no campo, praticando a agricultura ou criando carneiros e cabras nas estepes; ou, ainda, alguns eram nômades, como ainda são os tuaregues (do árabe, ṭawāriḳ; do berbere, tawāreg).

A conquista do norte da África iniciara-se logo em 642, quando o conquistador do Egito, ʿAmr b. al-ʿĀ, chefiou uma expedição na Cirenaica (grosso modo, atual Líbia). Dali enviou um exército até Zawila (um oásis povoado do Sul) comandado por ʿUḳba b. Nāfiʿ. A conquista do Norte da África foi difícil, em parte por causa de disputas políticas entre os muçulmanos, porém deve-se considerar a forte resistência oferecida, quer pelas tribos berberes do interior, quer pelas guarnições das cidades bizantinas como Trípoli e Cartago. Como afirmou Kennedy, mais do que os outros comandantes árabes, ʿUḳba deve ter compreendido que a melhor forma para dominar o Norte da África seria atraindo o apoio das tribos berberes. Em 670, o general fundou a colônia muçulmana de Ḳayrawān longe da costa, na planície central da Tunísia, para servir de base para futuras campanhas.

Em 681, ʿUḳba chefiou um espetacular ataque, que estendeu seu domínio até Tânger (Ṭandja), apesar de não ter sido organizado colônias muçulmanas para além da moderna Tunísia. Foi sua última e maior proeza, mas a sua memória perdurou, e os seus filhos continuaram a desempenhar um papel decisivo no Norte da África. Seguiu-se um período em que os árabes quase foram expulsos da região, e a própria Ḳayrawān caiu nas mãos do chefe berbere Kusayla (ou Kasīla). Os muçulmanos não retomariam a iniciativa senão em 694, altura em que o califa ʿAbd al-Malik, enviou um exército de sírios comandado por assān b. Nuʿman al-Ghassānī. Este capturou o último posto avançado bizantino em Cartago e derrotou um poderoso chefe berbere, a "feiticeira" al-Kāhina, estabelecendo-se firmemente em Ḳayrawān, em 701. Seu sucesso não acorreu só graças às suas tropas sírias mas também em virtude da política de colaboração com os berberes.

assān foi demitido pelo governador do Egito em 704, provavelmente por causa do seu sucesso, sendo substituído por Mūsā b. Nuayr. Mūsā nasceu em 640; seu pai fazia parte do séquito de Muʿāwiya, o fundador da Dinastia Omíada (Banū Umayya). Mūsā foi apontado pelo califa ʿAbd al-Malik para coletar o kharādj (impostos) em al-Bara, entretanto, sendo suspeito de fraude, fugiu e refugiou-se com o irmão do califa, o governador do Egito ʿAbd al-ʿAzīz b. Marwān; este entregou Mūsā para o califa na Síria, que lhe deu cerca de 100.000 dinares (dīnār) como gratificação. ʿAbd al-ʿAzīz doou metade da quantia para Mūsā e levou-o para o Egito, onde o nomeou como governador da Ifrīiya, anteriormente governada por assān b. Nuʿman. Vários observadores não entraram em acordo sobre a data do seu apontamento ao cargo, mas, de acordo com Lévi-Provençal, possivelmente este fato deve ter ocorrido em 698 ou no ano seguinte. Mūsā prosseguiu com a política de assān de recrutar berberes convertidos para os exércitos muçulmanaos, usando esta nova força para estender o seu domínio mais para oeste. Ocupou Tânger em 708, e nomeou como seu governador um aliado berbere chamado Ṭāriḳ ibn Ziyād.

A conquista do Norte da África fora alcançada através de uma aliança entre árabes e berberes em nome do Islã. À medida que aquela prosseguia, aumentava também o importante contributo berbere. Na altura em que os muçulmanos estavam a conquistar a região correspondente ao atual Marrocos, é provavel que a maioria esmagadora dos elementos do seu exército fosse berbere. Estas tropas compostas por berberes recém-convertidos ao Islã recebiam uma parte do saque, mas apenas alguns deles, como Ṭāriḳ ibn Ziyād, teriam ocupado posições de relevância política.

Os conquistadores alimentavam-se de outras conquistas, o domínio muçulmano no Norte da África teve de se expandir para sobreviver. Se o saque se esgotasse e não surgissem novas oportunidades, então os grupos e tribos lutariam entre si, o que ameaçaria a unidade do império.

Ṭāriḳ ibn Ziyād e a conquista do al-Andalus:

De acordo com a maioria das fontes históricas, Ṭāriḳ ibn Ziyād era um cliente berbere de Mūsā b. Nuayr, que atuou como comandante militar, sob ordens do seu superior, na conquista do Maghrib. Quando Mūsā retornou para Ifrīiya, este delegou à Ṭāriḳ um contigente de tropas, em sua maioria berberes, para defender Tânger. De sua base, Ṭāriḳ manteve contato com o governador de Ceuta, o lendário Conde Juliano. Este último, era provavelmente um governante visigodo, vassalo do rei de Toledo que incitou Ṭāriḳ a invadir a Península. Ibérica. Segundo a tradição, Juliano queria vingar a sua honra, porque o rei dos visigodos violara sua filha.

Algumas versões alegam que Mūsā colocou o projeto em prática ao receber uma autorização do Califa (Khalīfa), em Damasco (Dimashḳ al-Shām). Mas o desenrolar dos fatos faz parecer que Ṭāriḳ atuou por iniciativa própria sem esperar pelo consentimento do seu superior. Antes da expedição de Ṭāriḳ houve uma ou mais incursões menores nas região costeira do al-Andalus, a mais significativa foi, de acordo com muitos autores, liderada por Ṭarīf, outro comandante bérbere, em 710. Ṭarīf liderou um pequeno contigente de 400 soldados de infantaria e cem de cavalaria levemente armados e levando consigo um suprimento mínimo de alimentos e água e nenhum equipamento pesado. Sem encontrarem resistência, logo encheram seus navios com uma enorme quantidade do produto de suas pilhagens. A incursão de Ṭarīf indicava que um ataque surpresa mais organizado ao continente espanhol resultaria em grandes lucros (Wheatcroft).

Imagem: A Conquista da Península Ibérica - para uma melhor visualização, clique duas vezes no mapa

Fonte: NICOLLE, David, Atlas Histórico del Mundo Islámico (Madri: Edimat Libros, 2005).

Finalmente, na primavera do ano seguinte (em Abril de 711), com um exército provavelmente formado somente por soldados bérberes, Ṭāriḳ cruzou o Estreito com embarcações oferecidas por Juliano e desembarcou aos pés de uma montanha que posteriormente veio receber o seu nome, Gibraltar (Djabal Ṭāriḳ). Numerosas fontes árabes concordam com o número de embarcações utilizadas, quatro, e o número da força expedicionária estaria entre 7000 e 12.000 soldados, porém não podemos excluir a possibilidade deles serem apenas algumas centenas. Ao que parece o desenbarque ocorreu de forma tranquila, onde cada embarcação fez cerca de uma dúzia de viagens; possivelmente durante vários dias e sem muita resistência dos habitantes da região. Para Molina, a invasão foi realizada de forma relativamente tranquila, independentemente da conivência ou indiferença da população local.

Imagem: Gibraltar (território britânico)
Fonte: members.virtualtourst.com

O rei visigodo Rodrigo (ou Roderico), que na época estava lutando no norte da Península contra os bascos, apressadamente teve que liderar suas tropas contra os muçulmanos, que já haviam construído uma fortaleza em Gibraltar, de onde conduziam pequenas razias na região para obter provisões. O confronto ocorreu no final do Ramaḍān e no início de Shawwāl (Julho) perto de um rio, que provavelmente pode ser identificado com o Guadalete ou com o Barbate; mas, em todo caso, muito próximo da base muçulmana. Tudo indica que dentro de três meses, as tropas de Ṭāriḳ moveram-se muito pouco, dando tempo para os visigodos organizarem um grande exército - os muçulmanos não aproveitaram o elemento surpresa, o que estratégicamente foi uma decisão imprudente. Parece que a derrota do exército de Rodrigo ocorreu por causa da traição dos filhos do penúltimo rei dos visigodos, Witiza, que não aceitavam a escolha de Rodrigo como sucessor de seu pai - as informações sobre quem eram os filhos de Witiza e seus aliados são contraditórias, entre os principais nomes destacam-se Agila e Oppa. O grupo conhecido como "Filhos de Witiza" tinha como objetivo eliminar Rodrigo e dominar toda a Península.

Após a derrota do rei Rodrigo, o controle da Península Ibérica seria disputado pelos "Filhos de Witiza" e Ṭāriḳ. O próximo estágio do itinerário do comandante berbere foi atacar Écija, onde os remanescentes das forças visigodas haviam refugiado. Esta batalha foi tão dura como a de Guadalete, e novamente a vitória esteve do lado muçulmano, que, de acordo com algumas fontes, foram ajudados pelas tropas de Juliano. Depois desta batalha não havia nada que impedisse o avanço de Ṭāriḳ; este dividiu suas forças em quatro grupos, que partiram para Málaga, Granada, Córdoba (sob o comando de Mughīth al-Rūmī) e para Toledo (liderados por Ṭāriḳ).



Imagem: Ponte Romana de Córdoba (Espanha).
Fonte: Diogo Farias

É curioso que os visogodos não se procurassem em defender eficazmente suas cidades ou reunir um segundo exército. Além da resistência nas montanhas setentrionais, que inicialmente não foi conduzida pelos visigodos, somente Córdoba e Mérida ofereceram uma resistência significante. Os números são são nada grandiosos: o grupo de Mughīth, que atacou Córdoba, teria apenas 300 homens, que não teriam conquistado a cidade se o governante local reunisse mais de 400 para defendê-la. A situação da cidade de Córdoba não era melhor, a ponte romana estava destruída e havia um grande buraco em suas muralhas. Quando os muçulmanos chegaram a Orihuela, o governador Teodemiro tinha tão poucos homens, que vestiu mulheres de soldados e colocou-as nas muralhas. A capital do reino visigodo, abandonada pelos seus dignatários, caiu sem resistência nas mãos de Ṭāriḳ. Talvez esta situação fosse em parte resultado da falta de população armada, ou se esta existisse, não estaria qualificada para eliminar a ameaça.


Imagem: Toledo (Espanha).
Fonte: themaskedlady.blogspot.com


O declínio de Ṭāriḳ:

De acordo com várias fontes, o comandante muçulmano continuou sua marcha em direção ao norte, alcançando Guadalajara e depois Astorga. Segundo alguns relatos, Ṭāriḳ pediu reforços para Mūsā b. Nuayr, com o intuito de consolidar o domínio da Península. Outros afirmam que Mūsā manifestou uma grande irritação ao saber do avanço de seu subordinado e o ordenou a não avançar mais até a sua chegada. Em Junho de 712, Mūsā desembarcou na Península com cerca de 18.000 soldados, predominantemente árabes.

O encontro entre Ṭāriḳ e Mūsā b. Nuayr ocorreu em Toledo ou em suas cercanias. Parece que Mūsā reprimiu o seu subordinado, provavelmente porque o seu sucesso ameaçava a posição do seu superior. A seguir, a figura de Ṭāriḳ tornou-se obscura, talvez eclipsada por seu superior, que junto a ele fora chamado para prestar contas ao califa em Damasco; os dois abandonaram a Península Ibérica em 714. O último ato conhecido de Ṭāriḳ foi seu envolvimento em um julgamento contra Mūsā, provocado possivelmente pelo ressentimento e pela humilhação que sofrera em Toledo - neste tribunal, Ṭāriḳ participou como acusador de seu antigo superior.

Segundo Joaquín Vallvé, Mūsā deixou no al-Andalus seu filho ʿAbd al-ʿAzīz, que se estabeleceu em Sevilha, onde parece que se casou com a viúva do rei Rodrigo ou com sua filha, chamada Egilona. Seu objetivo era legitimar o domínio árabe e consagrar o novo emirado como herdeiro direto da monarquia visigoda. Consolidou as conquistas de seu pai e a tradição lhe atribui a conquista de Évora, Santarém, Coimbra e outras cidades portuguesas. Foi acusado de abandonar as tradições árabes por influência de sua esposa, quando adotou o uso de uma coroa e obrigou os nobres a inclinarem-se diante de sua presença, entretato outros autores afirmam que ele não quis reconhecer o novo califa de Damasco, Sulaymān, por este ter ordenado a prisão e a tortura de seu pai e de seu irmão. O certo é que foi assassinado em Março de 716, na Igreja de Santa Rufina que fora consagrada mesquita pouco tempo antes.

O êxito da conquista:

Segundo Manuela Marín, o êxito do Islã se explica, em primeiro lugar, por causa da situação desagradável que alguns grupos da sociedade peninsular viviam sob o domínio dos visigodos: o peso dos impostos, a condição humilhante dos servos, a discriminação contra os judeus e as contínuas sublevações dos bascos e de povos pagãos do norte, faziam com que esta população não se sentisse representada pelo grande projeto de unidade peninsular dos godos e dos hispanoromanos.

Um fator que pode explicar a ausência de resistência foi que os visigodos não teriam levado suficientemente a sério a invasão. Os adversários visigodos de Rodrigo tinham esperanças de que os invasores o derrotassem e partissem, deixando-os no comando, e é interessante que esta atitude era partilhada pelo menos por alguns invasores. Parece que Ṭāriḳ teve de convencer Mūsā a deixar os muçulmanos instalarem-se no al-Andalus.

De um modo geral, os muçulmanos ofereciam condições generosas que, sem dúvida, tornavam a rendição numa opção mais atraente, ao passo que a resistência vã podia levar a morte, como descobriram os defensores de Córdoba. No al-Andalus, parece que os "Filhos de Witza" puderam manter a posse de suas terras, na região de Múrcia, as condições resumiram-se à autonomia local; em Mérida, os habitantes conseguiram conservar suas posses, mas as propriedades dos que tinham morrido a combater pela cidade, dos que tinham fugido para o norte e das igrejas foram confiscadas. Nas fases finais da conquista, muitos senhores visigodos da região do vale do Ebro seriam autorizados a conservar as suas terras e posições, e em breve se converteram ao Islã. Excetuando-se a ação contra as terras da Igreja, as populações locais puderam conservar a posse das suas terras desde que pagassem uma contribuição fundiária e um imposto de capitação aos conquistadores.

Bibliografia:

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  • LÉVI-PROVENÇAL, C., "Mūsā b. Nuayr", The Encyclopaedia of Islam (CD-ROM), ed. BEARMAN, P. J., BIANQUIS, Th., BOSWORTH, C.E., DONZEL, E. van, HEINRICHS, W.P. (Leiden: Brill, 2005).
  • PLAJA, Fernando Díaz, A Vida Quotidiana na Espanha Muçulmana (Lisboa: Editorial Notícias, 1995).
  • REILLY, Bernard, Cristãos e Muçulmanos: A Luta pela Península Ibérica (Lisboa: Editorial Teorema, 1996).
  • KENNEDY, Hugh, Os Muçulmanos na Península Ibérica: História Política do al-Andalus (Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1999).
  • WHEATCROFT, Andrew, Infiéis: O Conflito entre a Cristandade e o Islã, 638-2002 (Rio de Janeiro: Imago Editora, 2004).
  • NICOLLE, David, Atlas Histórico del Mundo Islámico (Madri: Edimat Libros, 2005).
  • VALLVÉ, Joaquín, La Conquista y sus Itinerarios (http://www.almendron.com/historia/medieval/invasion_arabe/ia.htm).
  • MARÍN, Manuela, últimas teorías (http://www.almendron.com/historia/medieval/invasion_arabe/ia.htm).
Obs: Os termos em árabe foram "romanizados" através do sistema de transliteração da Encyclopaedia of Islam. A partir deste post em diante, o padrão da EI será aplicado em todas as transliterações do árabe.