terça-feira, 26 de abril de 2011

Carlos


A produção franco-germana "Carlos", com direção de Olivier Assayas, é dividida em três partes com cerca de 1 hora e 40 minutos cada e retrata a vida do terrorista venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido como Carlos, o Chacal. Este terrorista lutou a favor da revolução internacional comunista, dos países subdesenvolvidos e pela causa da Palestina nas décadas de 1970 e 1980. Carlos é responsável por uma série de atividades terroristas, entre elas um ataque contra uma reunião da cúpula da OPEP em 1975, que acabou com o sequestro de 42 pessoas. Provavelmente até 2001, ou seja, quando dois aviões atacaram o World Trade Center, Carlos foi o terrorista que mais atraiu a atenção da midía no mundo. Em 1994, foi preso no Sudão e até hoje cumpre pena numa prisão francesa pelo assassinato de dois policiais franceses.
O primeiro episódio da minissérie inicia com Carlos vivendo em Paris (com algumas passagens em Londres) após uma conturbada experiência em Moscou, quando não conseguiu completar seus estudos na superpotência comunista.São retratados os anos anteriores ao ataque contra a OPEP em 1975, quando Carlos se envolveu com grupos revolucionários como o Exército Vermelho, uma organização marxista japonesa, e as Células Revolucionárias, um grupo marxista alemão.

Foto: Carlos em ação durante o ataque contra a reunião da cúpula da OPEP em Viena (1975).

O segundo episódio começa com o ataque de Carlos contra a reunião da OPEP em Viena e aprofunda a relação do terrorista com agentes da KGB, do Iraque de Saddam Hussein e da Síria de Hafiz al-Assad (o pai de Bashar). A terceira parte demonstra como Carlos teve dificuldades em se adaptar no novo contexto mundial após a queda do bloco socialista. É neste ponto que  a história do terrorista venezuelano torna-se relativamente mais monótona mas extremamente interessante  ao demonstrar as mudanças ocorridas na ordem mundial pós-1989.
Quais foram estas mudanças?
A mais evidente é o fim da Guerra Fria e a queda do modelo socialista soviético, um ideal que moveu sonhos e pesadelos de muitos, responsável por uma das maiores atrocidades realizadas pelo homem. O objetivo era atingir o ideal da justiça social, de igualdade entre os povos, o fim do Estado e da miséria. Porém, o sonho foi anulado pela corrupção, histeria, pressão psicológica e social, privilégios que mantinham o poder de uma casta e muitas decisões equivocadas.
A psicologia de Carlos, complexa em sua natureza, carregava em seu seio o estigma que impediu este sonho se tornar realidade. Era um defensor dos povos oprimidos e explorados, mas o seu método era o terrorismo. Lutava pela igualdade social, entretanto suas táticas se mostravam custosas e seus "mecenas" permitiam que o terrorista usufruísse um padrão de vida relativamente alto.O filme de Olivier Assayas retrata um Carlos que transita entre o ativista revolucionário sonhador e um playboy violento e galanteador.

Fotos: Carlos boêmio e conquistador.

Carlos tinha seus ideais e viu seus serviços perderem espaço em um mundo em mudanças. Estas começam ser apresentadas no filme quando é expeculado o assassinato do presidente egípcio Anwar al-Sadat, que assinou um tratado de paz com Israel em 1979 e aproximou-se dos EUA. Sadat foi assassinado em 1981 e o Chacal não esteve envolvido nesta operação. Os líderes do nacionalismo árabe eram seculares que defendiam um Estado laico, possuíam um discurso que se assemelhava à retórica marxista e defendiam uma política de independência em relação às duas potências mundiais, EUA e URSS, porém na prática mantinham relações com o bloco socialista através de acordos comerciais, financeiros e de cooperação militar. O filme ilustra este contexto através da atuação de revolucionários marxistas em operações pela causa da Palestina, contrabando de armas e as relações da KGB com diversos ditadores árabes.

Foto: Carlos, o Chacal.
Com as mudanças pós-1989, os líderes nacionalistas iniciaram uma aproximação com a Europa Ocidental e os EUA, ainda hoje está fresca na nossa memória as imagens de Kaddafi cumprimentando os líderes  destes Estados ou a ajuda bilionária que os norte-americanos enviavam para o Egito de Mubarak. Kaddafi outrora acusado de financiar atentados terroristas passou a vender gás e petróleo para a Europa e entre seus  "antigos" sócios estão Silvio Berlusconi e a família Agnelli dona da FIAT. Mas nem todos estes líderes nacionalistas passaram a ter relações harmoniosas com a Europa e os EUA, como o  iraquiano Saddam Hussein e a relação cheia de avanços e retrocessos com a família Assad. Carlos acabou por ficar cada vez mais isolado devido a dificuldade de continuar a seguir os seus ideais e "vender" seus serviços na nova conjuntura internacional.
O Oriente Médio nestas últimas três décadas viu a expansão de práticas religiosas mais ortodoxas - não estou falando de violência e nem de terrorismo - como por exemplo o aumento do número de mulheres usando o niqab e o crescimento de partidos políticos aliados à movimentos religiosos. Isto não quer dizer que a sociedade foi dominada por estes grupos.
Os já desacreditados nacionalistas seculares estão sendo desafiados  pelo povo - alguns já caíram - e os partidos de esquerda árabes não possuem mais a força que tinham antigamente.  Entretanto, a situação é mais complexa e não se aplica a todas as outras regiões, nas revoltas populares o caráter religioso não é protagonista, sua força motriz é a crise econômica e a necessidade de reformas políticas. Mesmo no Bahrain, uma monarquia, onde há um certo conflito religioso entre uma elite sunita e uma maioria xiita, entre os manifestantes há vários sunitas, o que demonstra que não se deve exacerbar seu caráter religioso.

Foto: Magadalena Kopp, ex-esposa de Carlos.

Mas ao analisar o terrorismo em si, uma consequência direta da queda do bloco socialista foi o declínio da atividade de grupos terroristas de esquerda, com seus militantes que não eram mártires. Junto a este fenômeno viu-se o crescimento das atividades de grupos terroristas islâmicos, ou pelo menos de seu impacto na mídia "ocidental", e do martírio entre os seus militantes. Carlos era um terrorista pertencente a uma "velha escola" que posteriormente se converteu ao Islã e na prisão escreveu um livro chamado Revolucionary Islam, onde defende os ataques de Osama bin Laden ao WTC e a resistência de Saddam Hussein contra a invasão norte-americana do Iraque. A conversão de Carlos ao Islã é algo a ser investigado e discutido: trata-se de uma "adaptação" aos novos tempos, uma escolha religiosa ou algo ainda mais complexo do que estas duas alternativas?
Em relação a produção, orçada em cerca de 18 milhões de dólares, chega a surpreender pela sua qualidade, mesmo se tratando de uma produção made for tv. O também venezuelano Édgar Ramírez que interpreta o papel principal, não compromete e carrega de forma segura a complexidade do papel - lembrando que ele interpreta Carlos por mais de cinco horas e tem que se expressar em diversas línguas. A série chegou a ganhar o Globo de Ouro de Melhor Minissérie em 2011 e Carlos move um processo contra os responsáveis pela sua produção.

Foto: Carlos, o Chacal.

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