segunda-feira, 5 de abril de 2010

O cômputo do tempo na civilização indiana


Imagem: Instrumento do Observatório Jantar Mantar, em Jaipur (1727-1733).
Este instrumento localiza a posição dos corpos celestes, se estes se encontram no hemisfério norte ou sul.


A complexidade dos sistemas de cômputo do tempo na Índia resulta da própria natureza histórica da sua civilização, que apresenta um caráter "anarquista". A Índia apenas episodicamente conheceu uma unificação política; daí jamais ter havido uma possibilidade de uniformizar por decreto um calendário único, como no Império Romano e na China. A doutrina hindu confere ao estado um papel menor, não lhe reconhecendo o poder de modelar a sociedade, mas apenas zelar pelo bom funcionamento da ordem social vigente, tida como imutável. A cultura dominante é a cultura clerical, elaborada muito mais pelos brâmanes, do que pelos agentes da administração pública. Esta situação constrasta fortemente com a tradição oficial da astronomia chinesa, já consignado pelo Shujing na lenda, onde o mítico imperador Yao (que supostamente reinou de 2357 a 2258 a.C.), um dos "heróis civilizadores" do Império do Meio, pediu aos dois astrônomos Xi e He observarem os astros e estabelecerem um calendário em harmonia com os seus movimentos.

A preocupação com a exatidão astronômica das datações parece resultar da importância que a astrologia conserva na tradição hindu, aliada a idéia bramânica da eficácia dos ritos. Os antigos tratados rituais - os brâhmanas, considerados um apêndice ao Veda - insistem na necessidade de observar rigorosamente toda uma infinidade de detalhes do cerimonial, incluindo a determinação do momento astrologicamente mais propício para a elaboração de cada rito.

Época vêdica

Na época védica (II milênio a.C., grosso modo) as observações astronômicas não tinham ainda o rigor que viriam a ter mais tarde; e as alusões dos textos ao calendário são demasiado lacônicas para que se possa conhecer em detalhe o sistema usado. Provavelmente coexistiram diversas tradições (diversas "escolas vêdicas") e daí o aparente desacordo entre uns textos e outros. Ao que parece usava-se geralmente um ano solar de doze meses de 30 dias cada um, num total de 360 dias, menos 5 e 1/4 que o ano trópico (o período de translação da Terra); a esse ano alude metafóricamente um hino do Rgveda: "doze são as jantes, mas uma só roda, três os cubos; mas quem o saberá? dentro dela 360 raios, fixos como pregos, ao mesmo tempo móveis e imóveis...". As jantes são os meses, a roda o ano, os cubos as três estações climáticas tradicionalmente consideradas na Índia (fria, quente e húmida) e os raios os dias do ano.

A correspondência deste ano de 360 dias com o ano trópico era provavelmente obtida pela inserção de um mês suplementar (25 ou 26 dias) de cinco em cinco anos. A esta prática parecem aludir tanto o Rgveda quanto o Arthaveda: o primeiro atribui a Varuna (a divindade do céu noturno) o conhecimento "dos doze meses, com suas produções, e de mais o que se a lhes ajunta", o segundo refere-se ao Criador "que compõe de noites e dias o edifício de trinta membros e o décimo-terceiro mês"

O ciclo quinquenal não é absolutamente rigoroso, pois o total de 1830 dias que contém não é divisível por 365,2422 dias solares médios, duração do ano trópico, a diferença é de cerca de três dias e meio. O ano é normalmente designado por varsa, "chuva", o que mostra que na sua origem está mais a observação do clima do que dos astros. Conhecem-se os nomes dos dozes meses do calendário vêdico, que comportava ainda uma divisão do ano em seis "estações" de dois meses cada uma.

O Arthaveda e diversos outros textos em prosa apensos aos quatro vedas clássicos, referem-se a uma curiosa unidade astronômica, que viria a ter na astronomia indiana um grande futuro: o naksatra, termo que tem sentido próprio significa "estrela" ou ainda "constelação", mas em sentido técnico designa cada uma das "mansões lunares", ou seja, as constelações que a Lua percorre durante uma revolução completa no seu movimento em torno da Terra. A revolução sideral da Lua (o tempo que a Lua demora a dar volta ao zodíaco e projetar-se de novo sobre a mesma constelação) dura na realidade 27 dias, 7 horas, 43 minutos 11 segundos e 1/2, de modo quer existem 27 ou 28 mansões lunares. Ao que parece os textos antigos referiam apenas 27 mansões lunares, mas os mais modernos já 28.

É possível que o conceito indiano de naksatra ou "mansão lunar" esteja na origem do conceito de xiu na astronomia chinesa, também em número 28. Pelo menos noutros aspectos a influência da astronomia indiana na China está historicamente comprovada: sob a dinastia Sui, em 610, mencionam-se na China as versões de 4 tratados astronômicos ditos "dos brâmanes" (boluomen); sob os Tang (618-907) sabe-se de um certo Qutan Xida (provavelmente a trasncrição de Gautama Siddha ou Siddhârta), que traduziu para o chinês um calendário indiano. O mesmo conceito está provavelmente também na origem dos manâzil (plural de manzil, "morada, mansão") ou manâzil a-qamr ("moradas da Lua") da astronomia árabe medieval.

Cada naksatra corresponde a sua constelação vizinha no zodíaco e tem uma divindade tutelar e um símbolo. Os nomes dos naksatras (de onde derivam os nomes dos meses na maioria dos calendários da Índia) variam ligeiramente de texto para texto. Novas precisões nos aparecem no Jyotisavedânga ou "apêndice astronômico do Veda", um breve tratado de astronomia de que existem duas versões diferentes (uma do Yajurveda e outra do Rgveda). O tratado baseia-se no ciclo (yuga) quinquenal, que se diz ter começado num momento em que o solstício de inverno se situava na constelação do Golfinho (talvez em1350 a.C.); mas isso não significa que o tratado remonte a uma época tão recuada, datando provavelmente meados do primeiro milênio a.C. A mais importante das novas noções com que aí topamos é a de thithi ou "dia lunar", unidade de tempo frequentemente usada tanto em astrologia como na datação de inscrições, que se pode definir como a trigésima parte de uma lunação. A duração do thithi é de 23 horas, 37 minutos e 28,092 segundos, mas nas datações usa-se geralmente a duração real do thithi, extraída das tabelas oferecidas pelos siddhântas ou tratados de astronomia. A duração real varia entre um mínimo de 21 horas, 34 minutos e 24 segundos e um máximo de 26 horas, 6 minutos e 24 segundos.

Para a medição em tempo de cada thithi não se usavam na Índia antiga as unidades de tempo dos caldeus de que usamos ainda hoje (horas, minutos e segundos), mas estranhas unidades de tempo como o muhûrta, equivalente a um trigésimo do dia solar (48 minutos), a nâdikâ, equivalente a meio muhûrta (24 minutos), por sua vez correspondente a 10 1/20 kalâs, subidivindo-se a kalâ em 124 kâsthâs e por seu turno a kâsth em cinco aksatras. O dia tem assim a bizarra conta de 603 kalâs, ou, segundo uma outra subdivisão, 124 lavas. Ao que parecem estas subdivisões foram adotadas por medirem ao mesmo tempo o dia solar, o dia sideral e o thithi ("dia lunar").

A época clássica: os pressupostos astronômicos

Após a fundação do Império Persa e da unificação do Irã por Ciro (559-529 a.C.) intensificaram-se os contatos entre Índia e o Ocidente, o que permitiu o influxo das ideias astronômicas dos caldeus e, um pouco mais tarde dos gregos - estas sobretudo a partir da conquista do noroeste da Índia por Alexandre Magno em 326 a.C. A Índia, desde sempre muito mais ligada ao Ocidente que ao Oriente, beneficiou assim dos progressos que a astronomia fez no mundo mediterrânico, do mesmo modo que este beneficiou dos avanços do pensamento indiano no domínio da matemática, como a invenção do zero e das funções trigonométricas. É nítido o contraste com a China que, à parte algumas influências da ciência indiana introduzidas pelo budismo nos primeiros séculos da nossa era, apenas veio a ter conhecimento da astronomia ocidental no século XVII, através dos jesuítas.

As influências da astronomia helenística tornaram-se nítidas nos tratados de astronomia indiana da época clássica, chamados siddhântas, palavra que literalmente significa "perfeição acabada, última perfeição". Há notícia da existência de cinco siddhântas, mas apenas um deles, o Saurasiddhânta ou Sûryasiddhânta chegou completo até nós; os outros apenas são conhecidos através do comentário de Varâhamihira, na sua Pañcasiddhântikâ, que data de começos do século VI, e do resumo deles de Al-Bîrûnî no século XI. Os dois primeiros, o Paitâmahasiddhânta e o Vâsisthasiddhânta, trazem pouca novidade: o primeiro pouco se afasta do Jyotisvedânga, de que reproduz o ciclo quinquenal; as principais inovações do segundo são as coordenadas de algumas estrelas em vez de as distribuir simplesmente pelos naksatras e introduzir a divisão do zodíaco em doze signos. Os dois seguintes, o Pauliçasiddhânta e o Romakasiddhânta, são adaptações de obras helenísticas, sendo a primeira, segundo Al-Bîrûnî, de Paulo de Alexandria. A segunda do um astrônomo indiano Çrîsena, que provavelmente se limitou a refundir um tratado de origem romana, onde o nome que ficou conhecido significa "siddhânta dos romanos". Utilizou como meridiano de referência o Yavanapura, "cidade dos gregos" que é provavelmente Alexandria, ou então Constantinopla.

Imagem: Instrumento do Observatório Jantar Mantar, em Jaipur (1727-1733).
Representa uma metade da esfera celestial.

Em relação ao calendário, as inovações mais significativas foram a adoção da semana e a dos doze signos do zodíaco, cujos nomes são em sânscrito tradução dos nomes gregos. Os dias da semana possuem os nomes das divindades indianas dos sete astros do sistema solar - grosso modo correspondentes às divindades romanas ou germânicas que os designam na maior parte das línguas modernas da Europa: dia do Sol, dia da Lua, dia de Marte, e assim por diante. O mesmo se passa com os doze signos do zodíaco, que tem os mesmos nomes que os gregos: Mesa (Áries), Vrsabha (Touro), Mithuna (Gêmeos), Karkata (Câncer), Simha (Leão), Kanyâ (Virgem), Tulâ (Libra), Vrçcika (Escorpião), Dhanus (Sagitário), Makara "monstro marinho" (Capricórnio), Khumba "jarra, bilha" (Aquário), Mîna (Peixe).

Um outro provável traço de influência da astronomia helenística que se descobriu no Romakasiddhânta é o uso de um yuga ou ciclo de 2850 anos luni-solares de que 1050 são embolísticos (um mês suplementar), que permite por o ano lunar de acordo com o solar num ciclo de 19 anos: é o famoso ciclo de Méton, descoberto pelo astrônomo ateniense desse nome em 432 a. C., e ainda hoje utilizado no cômputo eclesiástico para calcular a data da Páscoa, celebrada no primeiro domingo após a primeira lua-cheia da primavera.

Noutros aspectos, porém, estes siddhântas de origem helenística diferenciam-se dos seus modelos ocidentais, o que mostra que no decurso dos séculos foram trabalhados e corrigidos, chegando eventualmente a resultados mais precisos que os da astronomia grega: ao ano trópico é assim atribuída uma duração de 365 dias, 5 horas, 55 minutos e 12 segundos, contra 365 dias, 5 horas, 55 minutos e 15,8 segundos de Hiparco e Ptolomeu.

O Sûryasiddhânta é considerado o mais rigoroso dos siddhântas, e é certamente por isso que é apresentado como uma revelação feita pelo próprio Sol a Maya, um asura (espírito maligno) que o invocara. Segundo alguns dos manuscritos da obra, como Maya não podia suportar o ardor do Sol e este se não podia deter o seu curso para o ensinar, recomendou-lhe que se dirigisse a Romaka (Roma), prometendo que aí se encarnaria em um mleccha (barbaro) para então ser instruido. Esta lenda relata a origem parcialmente ocidental da ciência astronômica que o tratado transmite. Apesar de algumas incoerências, os dados que fornecem permitem, datá-lo de meados do século IV da nossa era ou século V. O Sûryasiddhânta apresenta interesse é a definição astronômica dos grandes ciclos da involução do mundo caros à cosmologia hindu. A duração desses ciclos é, em parte, resultado do desejo de harmonizar entre si as diversas unidades astronômicas:

"... 30 muhûrtas constituem um dia e uma noite dos mortais; 30 desses dias fazem um mês, dividido em 2 quinzenas; 6 meses formas um ayana ("movimento" do Sol, num semestre ao norte, noutro ao sul do equador) e 2 ayanas formam um ano. O ayana meridional é a noite e o setentrional o dia para os deuses. 12 000 anos divinos (divyavarsa), compostos de (366) dias, constituem um caturyuga (período de quatro yugas, também chamado mahâyuga, "grande yuga"), ou período das quatro idades. São assim atribuídas: a idade Krta (perfeita, Idade de Ouro) tem 4000 anos divinos; a Tretâ ("tríada", Idade de Prata), 3000; a idade Dvâpara ("duque", a Idade de Bronze), 2000 e a Kali ("ás", a Idade de Ferrou ou das Trevas em que vivemos) 1000. O Krta, a Tretâ, o Dvâpara e o Kali juntos constituem uma "grande idade" (mahâyuga) ou conjunto de quatro idades; um milhar de tais conjuntos é um dia de Brahmâ."

A atribuição de durações decrescentes aos quatro yugas corresponde a uma ideia de aceleração do curso da História, que só não corresponde à das modernas concepções historiográficas porque assenta num conceito de tempo regressivo e não na ideia de progresso. O início do kaliyuga ou idade de trevas em que vivemos é geralmente identificado com o momento da morte de Krsna, a derradeira encarnação de Vixnu antes de Kalki, o avatâra escatológico que porá fim ao kaliyuga e com ele a todo um ciclo de existência do mundo.

A época clássica: calendários

As festas religiosas da Índia são geralmente reguladas pelo calendário luni-solar, em que o ano tem 12 meses alternadamente de 29 e 30 dias, intercalando-se periodicamente (no ciclo de 19 anos) um mês suplementar para restabelecer a concordância do ano religioso com o ano solar.

O calendário solar é por vezes usado nas datações de atos oficiais e para determinar a data de certas festas; para uso civil é usado no Kêrala ou Malabar, no Tamilnâdü e no Bengala; em Mangalor é apenas usado pelos brâmanes. O começo do ano é definido pela mesasamkrânti ou entrada do sol no signo (râçi) de Áries (mesa), que tanto pode ser determinada pelo método nirayana - o primeiro caso toma-se a data da entrada real do Sol no signo de Áries (11 de abril) - sâyana - utiliza-se o equinócio verdadeiro (21 de Março) como início do ano, convencionando-se, que se deu nessa data o mesasamkrânti, embora na realidade o Sol esteja ainda dentro da constelação de Peixes. O método nirayana é mais usual. O começo dos meses seguintes é definido pelas outras samkrântis - entrada (real ou convencional, dependendo do sistema) do Sol em cada um dos signos subsequentes. Aí surge em qualquer dos casos, uma complicação suplementar: como a samkrânti, astronômicamente calculada, pode ocorrer a qualquer momento do dia ou da noite, mas o dia começa sempre ao nascer do Sol, há vários critérios para determinar qual é o dia 1 do mês solar em causa. Em Orissa conta-se como o dia 1 do mês aquele em que ocorre a samkrânti; no Bengala, quando a samkrânti tem lugar entre o nascer do Sol e a meia noite considera-se que o dia 1 é o seguinte, ao passo que se tem lugar entre a meia-noite e o nascer do Sol o dia 1 não é o dia seguinte mas o imediato; para os tâmules do Tamilnâddu e da região do Cabo Comorim, o mês começa no dia da samkrânti se esta tem lugar entre o nascer e o pôr do Sol, no dia imediato se entre o pôr e o nascer do Sol; para os malabares ou malaialas do Kêrala, se a samkrânti ocorre durante os primeiros 3/5 da metade diurna do dia civil (portanto até às 13 h 12 m, na nossa maneira de contar o tempo) o mês começa nesse mesmo dia, no dia imediato se depois dessa hora.

Os nomes dos meses vêdicos caíram a muito em desuso; por isso, na época clássica e nos dias de hoje, quando se utiliza o calendário solar, designam-se os meses ou pelos nomes dos signos do zodíaco correspondentes (uso malaiala), ou pelos dos meses lunares, que como veremos melhor em seguida, derivam dos nomes dos naksatras em que é suposto ter o seu plenilúnio. Neste último caso há ainda a considerar dois usos diferentes: pelo costume tâmule, o mês solar toma o nome do primeiro mês lunar com que parcialmente coincide; pelo bengala, o do segundo.

No calendário luni-solar o mês é geralmente dividido em duas quinzenas (paksasasas), designadas por uma quinzena clara (çuklapaksa, sitapaksa ou çuddhapaksa), ou "primeira quinzena" (pûrvapaksa) correspondente aos períodos da lua-nova e quarto-crescente em que ao pôr do sol há luar; outra por "última quinzena" (aparapaksa) ou "quinzena escura" (krsnapaksa, asitapksa, bahulapaksa, vadyapaksa) correspondente ao período da lua-cheia e quarto-minguante, em que a Lua nasce depois do pôr do Sol e não há luar à boca da noite. No norte da Índia considera-se normalmente que o mês começa na lua-cheia (pûrnacandra, pûrnamâsa ou pûrnimâ), de modo que a quinzena escura precede a clara. No sul da Índia prevalece o costume oposto: o mês começa com a lua-nova, de modo que a quinzena clara precede a escura; é o uso chamado amânta (lua sem fim). Embora tenham geralmente os mesmos nomes, os meses do sul e do norte só coincidem na realidade durante a quinzena clara.

Conforme já dissemos, os meses tomam normalmente nomes derivados dos naksatras em que se situam os respectivos plenilúnios. Por outro lado existem 28 naksatras no zodíaco, mas no mesmo ano solar não podem ocorrer mais do que 12, no máximo 13. A escolha dos 12 naksatras dos meses lunares é parcialmente convencional, escolhendo-se uma vez o primeiro e na outra geralmente o segundo dos dois (ou mesmo três) naksatras em que naquele mês pode ocorrer o plenilúnio.

Nas inscrições as datas não são geralmente contadas pelos dias do mês, mas pelos tithis, numerados de um a quinze dentro de cada quinzena, à exceção dos tithis das sizígias que tem nome próprio. Como o início dos tithis não coincide senão muito raramente com o nascer do Sol, os dias da quinzena recebem o número (ou nome) do tithi que termina no seu decurso. Como os tithis correspodem a distâncias angulares fixas e não a intervalos de tempo iguais, é imprescindível recorrer a tábuas astronômicas. Podem começar dois tithis no mesmo dia solar ou não começar nenhum tithi durante o dia; nesses casos procede-se como para os meses, isto é, insere-se no mês um dia suplementar.

Quanto à contagem dos anos, há que notar que o seu começo não decorre em toda Índia na mesma ocasião. No norte o ano luni-solar civil começa com a lua-nova do mês Chaitra, vizinha do equinócio da primavera; mas como no norte da Índia os meses começam na lua-cheia, o ano-novo tem lugar no meio do mês, entre a sua quinzena escura e a sua quinzena clara. No sul tudo é mais simples, inicia-se com a lua-nova Kârttika, coincidindo assim com a popular festa das luzes ou divali.

Não há uniformidade namaneira de contar os anos, pois coexistem dois estilos: ou contar por anos expirados, ditos gata, "idos" (o que se pressupõe a existência de um ano 0, qualquer que seja a era adotada); ou contar pelo ano em curso, dito vartamâna, "corrente", como a era de Cristo, que começou no ano 1.

As eras adotadas são assaz diversas. Mencionaremos apenas os usos mais correntes ou mais curiosos. Os anos podem computar-se simplesmente pelo kaliyuga, que é suposto ter começado a 18 de Fevereiro de 3102 a.C. Podem também computar-se pelos ciclos duodenário e sexagenário de Júpiter, em que os anos são designados por nomes e não por números. No ciclo duodenário dão-se aos anos os nomes dos doze signos do zodíaco, consoante o signo em que Júpiter se encontre no ano em causa, ou os dos doze meses precedidos de mahâ.

O início dos ciclos sexagenário é fixado em diversas datas, consoante as regiões da Índia e as tabelas astronômicas utilizadas; uma tradição do país tâmul situava-o no ano correpondente a 427 a.D., enquanto que no país telegu (atual estado de Andhrapradesh) o faziam começar 14 anos antes do kaliyuga, portanto em 3116 a.C.Uma era aparentada ao kaliyuga pelas origens míticas, mas desprovida de significação astronômica, é a dos Sete Rexis (saptarsikâla), do Mundo (lokakâla ou laukikakâla) ou dos Livros (Santos) (çâstrakâla), usada no Caxemira e no Panjâb na época de Al-Bîrûnî; começa em 3076 a. C. A era do Nirvana de Buda, começa em 543 a.C., caiu em desuso na Índia, mas usa-se em Ceilão e nos países budistas da Península Indochinesa. Os Jainas usam a era da morte de Jina, fundador da seita, em 527 a.C.

As duas era mais correntes na Índia e nos países indianizados do Sueste Asiático são a de Vikrama e, sobretudo a dos Çakas. A primeira, usada um pouco por toda parte, mas sobretudo no centro e no oeste da Índia, conta os anos a partir do reinado do rei Vikramâditya, herói de um ciclo de lendas comparável aos de Alexandre e do Rei artur no Ocidente; inicia-se no ano 58 da era cristã, conta geralmente por anos expirados. A segunda data do estabelecimento dos mahâksâtrapas ou "grandes sátrapas" Çakas (Citas, ou seja, indo-europeus nômades do grupo iraniano, assaz persianizados) na zona do Guzerate e do Mahârâshtra, e inicia-se em 78 da nossa era. Levada com a influência indiana para a Península Indochinesa e para a Insulíndia, é ainda hoje utilizada em Java, mas com a seguinte particularidade: até 1625 a.D. contou-se por anos luni-solares, com inserção periódica de um mês suplementar para restabelecer a correspondência com o ano solar; desde essa data, por decreto de Sultan Agung de Mataram, adotou-se sempre o ano de 354 dias, o que obriga a recorrer ao uso de tabelas que dêem em cada caso a era e a data do ano-novo.

Outras eras de origem política tiveram vida mais efêmera: assim a era dos Guptas, que começa a contagem dos anos com o advento dessa dinastia em 319 a.D., usada na Índia central e no Nepal até o século XIII; a de Harsa, datada da subida desse rei ao trono em 606 a.D., usada no seu império (Índia setentrional, século VII) e também no Nepal; a era dos Câlukyas orientais, inaugurada em 10755 e abandonada em 1162; a era marata, fundada por Xivaji (Çivajî) em 1673 e logo caída em desuso; etc.

Uma era bastante referida pelos nosos antigos é a "era de Coulão", que começa em 824-825 a.D. e parece corresponder à data da fundação da cidade ou da sagração de um templo de Xiva que aí existiu. Localmente é muitas vezes designada por era Paraxuráma (Paraçurâma), uma encarnação de Vixnu a quem é atribuída a secagem de toda faixa litoral de Mangalor para o sul, e para leste até aos Gates, e portanto as origens do Kerala ou Malabar, assim retirado das águas. Outras vezes - tradição reportada por exemplo por Duarte Barbosa - identifica-se o seu ponto de partida com a divisão do Malabar em pequenos reinos pelo último rei Chêra, Cêramân Perumâ.l. Segundo essa lenda - criada para disfarçar a derrota do último mahârâja ou "grande rei" da dinastia Chera (Cêram) pela dinastia Chola (Côlam) do Tamilnâdü, no século X da nossa era - Cêramân Perumâ_l teria voluntariamente abdicado, dividindo então os seus territórios entre parentes e ministros. Na versão hindu da lenda, que deve ser a original, se teria retirado - como modernamente continuavam a fazer, por exemplo, os reis de Cochim - para fazer vida ascética num turucol ou pagode. Noutras versões da lenda ter-se-ia convertido ao budismo e feito monge, ao passo que na versão cristã se teria convertido ao cristianismo e partido para peregrinação para o túmulo de S. Tomé em Meliapor, na costa do Coromandel. Na versão muçulmana, a mais difundida, que Camões põe em verso no Os Lusíadas, teria ao aderido ao Islã e partido para Meca. Seja como for, a era de Coulão continua a ser utilizada no Malabar, contando-se os anos (sempre solares) pelo ano corrente (vartamâna), no norte do Kerala em estilo kanyâdi (com o ano a começar no signo de Virgem), no sul em estilo simhâdi (a começar no Leão).

Uma outra era, curiosa mas de uso efêmero, é a "era divina" (ta'rîkh-i Ilahî) estabelecida pelo grão-mogol Akbar (1556-1605), durante sua tentativa de unir os seus súditos em torno de uma religião universal, a "religião de Deus" (dîn-i Ilahî), máximo divisor comum entre o Islã, o Hinduismo e o cristianismo . Inicia-se com sua subida ao trono (14 de Fevereiro de 1556), mas foi abolida por seu neto Shâh Jahân (1627-1658). Baseava-se no calendário persa, que é solar, com o início do ano no nou rûz ("novo dia") que coincide com o equinócio da primavera, embora compute os anos pela Hégira (622 a.D.). Contados a partir da mesma data, os anos persas não tem a mesma numeração que os anos árabes, porque estes são de 354 ou 355 dias e aqueles de 365 ou 366. Os muçulmanos da Índia usam normalmente o calendário árabe, puramente lunar, cujo defasamento do ano solar aumenta cada ano de 11 dias, de modo que 32 anos civis persas, hindus ou cristãos correspondem a 33 anos muçulmanos. A conversão de uma era à outra apenas com tabelas se pode fazer comodamente.

Imagem: Instrumento do Observatório Jantar Mantar, em Jaipur (1727-1733).
Calcula a altitude e a azimute (a coordenada no sistema de coordenadas horizontais) do Sol e de outros corpos celestes.

Quanto aos cristãos da Índia, usaram até à chegada dos portugueses a era dos Selêucidas, dita "dos gregos infiéis", que começa com a subida ao trono de Seleuco Nicátor, um dos generais de Alexandre Magno, em 312 a.C. Às vezes designada impropriamente por "era de Alexandre" (que na realidade falecera em Babilônia em Junho de 323), é a era normalmente usada pelos cristãos siríacos, tanto jacobitas como nestorianos. Por influência portuguesa os cristãos do Malabar começaram a datar os anos do Nascimento de Cristo.

Um curioso uso que se encontra tanto na Índia como nos países indianizados do Sudeste Asiático, nomeadamente em Java, é o uso da datação por cronogramas. Trata-se geralmente de frases simbólicas ou pequenos poemas, em que atribuindo às letras o seu valor numérico, se consegue ler uma data, assim indicada de forma críptica. O uso sobreviveu entre os muçulmanos da Índia e ocorre muitas vezes nas crônicas indo-persas.

Obs: foi utilizado como base para elaboração deste post o artigo de Luís Filipe F. R. Thomaz, O cômputo do tempo na civilização indiana (2006).

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