terça-feira, 4 de maio de 2010

Para discutir o legado Otomano

Imagem: Mesquita Azul - Sultanahmet Camii (Istanbul, Turqua), construida entre 1609 e 1616.
Fonte: Diogo Farias


Até o final do século XVII, a Europa Central e Ocidental teve razões para temer a expansão imperial Otomana, curiosamente, esses velhos receios mantêm-se até ao presente, tendo-se transformado em preconceitos culturais, que agora se viram para a plena integração da Turquia, o país sucessor do Estado Otomano, na União Européia. Os episódios nacionalistas retiraram de sua formação multiétnica e multirreligiosa o seu lugar na evolução histórica. Até a pouco tempo o passado otomano foi fortemente ignorado e/ou entendido em termos negativos nos mais de trinta países que hoje ocupam territórios antes pertencentes ao Império.

Nos Estados árabes as crônicas históricas mantiveram um silêncio ou uma certa hostilidade de décadas em relação aos Otomanos. Nos seus esforços para criar um sentimento de comunidade árabe, os nacionalistas condenaram os Otomanos. Afirmavam que durante o período otomano, os direitos nacionais foram extintos. Assim os novos Estados emergentes ignoraram os Otomanos, recuando ao Califado Abássida (750-1258), ou por vezes aos faraós ou os reis da Babilônia a fim de identificarem as origens da História árabe, em detrimento do passado otomano. Há alguns sinais positivos de mudança na Síria, no Líbano, no Egito e também no Iraque, por exemplo. Tanto os eruditos destes países como acadêmicos estrangeiros interessados no estudo dessas regiões começam agora a analisar o período Otomano dos territórios árabes, integrando-o ao seu próprio passado, em vez de menosprezá-lo. Muitos deixaram de caracterizar este período de uma forma negativa, reconhecendo o seu espaço na história árabe. Como parte deste debate, há um progressivo consenso entre os estudiosos de que a maioria dos súditos árabes não consentiu e nem participou da dissolução do Império Otomano.

Imagem: Rumeli Hisari ou Fortaleza Europa (Istanbul, Turquia) construida em 1452, a pedido do Sultão Mehmet II para a conquista de Constantinopla
Fonte: Diogo Farias

Uma importante característica do Império Otomano foi a tolerância de seu sistema administrativo vigente na maior parte de sua existência. No mundo atual, cujas tecnologias de transporte e de comunicação, bem como a circulação de pessoas proporcionam um inigualável confronto com a diferença, o caso otomano justifica uma análise mais atenta. Durante séculos, o domínio otomano sobre os povos subjugados foi brando. O seu sistema político exigia aos administradores e oficiais do exército a proteção dos súditos no exercício da sua religião, fosse ela o Islã, o Judaísmo ou o Cristianismo, de qualquer vertente – sunita ou xiita, ortodoxa ou católica, armênia ou síria. Este requisito baseava-se no princípio islâmico da tolerância aos “Povos do Livro”, isto é, os judeus e cristãos. Eram os “povos” que haviam recebidos a revelação de Deus, ainda que de forma incompleta e imperfeita; o Estado islâmico otomano tinha a responsabilidade de os proteger na prática de suas crenças. É certo que os súditos judeus e cristãos foram ocasionalmente perseguidos e mortos pela sua fé. Contudo, essas foram violações do princípio de tolerância – um elevado valor que o Estado esperava e exigia que fosse respeitado. Esses princípios orientaram as relações intercomunitárias no Império Otomano ao longo dos séculos; porém, nos anos finais reinou a desarmonia. No entanto, durante quase toda a sua história o império mostrou ao mundo um modelo político eficaz de um sistema político multirreligioso.

Imagem: Taswir/Nakish (Miniatura Otomana), essas miniaturas, pinturas que remetem à tradição otomana, são vendidas em diversas lojas do centro histórico e Istanbul (Turquia)
Fonte: Diogo Farias

Ao fundar o seu novo Estado, na Anatólia, os nacionalistas turcos quiseram propiciar um sentimento comum de identidade turca através da ligação ao território da Anatólia pré-otomana. Transformaram os Hititas nos seus antepassados nacionais, procurando omitir o período otomano como sendo irrelevante para a identidade turca moderna (a dinastia Pahlavi encontrou, da mesma forma, a sua legitimação na Antiguidade – com os Aquemênidas, de Persépolis). Alegavam, ainda, que o Estado Otomano era corrupto, decadente e fraco, pelo que mereceu ser substituído pelo Estado-nação turco. No entanto, verifica-se também a existência de correntes antagônicas construídas ao longo de dezenas de anos. Já em 1940, em alguns artigos acadêmicos discutia-se o significado que o passado otomano tinha na Turquia atual. Em 1953, a República festejou com grandes comemorações o quinto centenário da conquista Otomana de Constantinopla, aclamando o sultão Mehmet II como herói nacional. Desde os anos 80, o repúdio do passado otomano tem vindo a dar lugar, de um modo geral, à sua aceitação, a despeito da considerável controvérsia em torno da natureza e significado desse mesmo passado. Na década de 90, o escritor turco Orhan Pamuk, utilizava (tal como outros) o passado otomano como cenário dos seus livros, o que demonstra a popularidade da temática otomana. Hoje existe um interesse bastante grande pelo passado otomano, tanto por parte do público como dos estudiosos: os monumentos da arquitetura otomana foram restaurados e artefatos otomanos são procurados pela classe média turca para a decoração das suas casas. Abundam igualmente programas televisivos sobre temas e contextos otomanos e o mesmo se passa no universo da animação.

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