segunda-feira, 31 de maio de 2010

Aśvamedhá: o sacrifício do cavalo

A origem da monarquia e os sacrifícios reais

No final do período Vêdico, as tribos arianas já estavam consolidadas em pequenos reinos, não haviam perdido todo o seu carater tribal, mas já possuíam capitais permanentes e um sistema administrativo rudimentar. As antigas assembléias tribais poderiam ser consultadas esporadicamente, mas seu poder diminuia rapidamente, no final deste período a autocracia do rei era apenas limitada pelos seguintes fatores: o poder dos brâmanes, o peso da tradição e a força da opinião pública, que sempre teve grande influência na Índia antiga. As divisões políticas baseadas no parentesco deram lugar às baseadas na geografia. Isso aliado à uma forte sensação de insegurança, pode ter sido um importante fator para o crescimento do ascetismo e de uma visão pessimista do mundo.

Este período testemunhou o desenvolvimento do culto sacrificial, que ganhou importância com a ascensão das pretensões reais. Boa parte da literatura brâmane era devotada às instruções para a performance meticulosa dos novos sacrifícios reais, não mencionados no Rgveda. Entre eles estavam o rajasuya, ou "consagração real", e o vajapeya ou "bebida da força", uma espécie de cerimônia de rejuvelhecimento, que não apenas restaurava as forças vitais do rei de meia-idade, mas o fazia ir do estatuto de raja para o de samrat ("monarca completo"), suserano de diversos reis menores. O mais famoso e significativo de todos os novos sacrifícios foi o asvamedha, ou o "sacrifício do cavalo".

A mais antiga lenda sobre a origem da monarquia no Aitareya Brâmana, um dos últimos textos vêdicos, talvez do século VIII ou VII a.C. O texto conta como deuses e demônios estavam em guerra e como os primeiros sofriam nas mãos dos seus inimigos. Os deuses reuniram-se e decidiram que precisavam de um raja (rei) para liderá-los na batalha. Escolheram Indra como seu rei e em pouco tempo reverteram a guerra. A lenda sugere que, no início, a monarquia na Índia foi elaborada pelas necessidades humanas e militares e a principal tarefa do rei era liderar seus súditos na guerra. Um pouco mais tarde o Taittiriya Upanisad repetiu a história, mas algumas alterações; por desconfiança, os deuses não elegeram Indra, mas fizeram um sacrifício ao grande deus Prajapati, que enviou seu filho Indra para se tornar rei. Neste estágio o rei ainda era visto como um líder militar. - "aqueles que não possuem rei, não podem lutar" dizia o texto - assim a monarquia teria uma sanção divina e o rei dos imortais, que era o protótipo de todos os reis terrenos, possuia seu estatuto por indicação de uma entidade maior.

Nesta época, o rei era exaltado acima dos mortais ordinários, através do poder mágico dos grandes sacrifícios reais. A Consagração Real (rajasuya), que na sua forma completa era uma série de sacrifícios que duravam cerca de um ano, imbuía o rei de um poder divino. Durante as cerimônias ele era identificado com Indra "porque ele era ksatriya e e porque ele era um sacrificador", e mesmo com o deus maior Prajapati. Ele dava três passos numa pele de tigre e assim era magicamente identificado com o deus Visnu, que com três passos percorreu a Terra e o Céu. O sumo-sacerdote dirigia aos deuses as seguintes palavras: "Do grande poder é ele que deve ser consagrado; agora ele se tornou um dos seus; você deverá protege-lo". O rei era evidentemente um "companheiro dos deuses", se não um próprio deus.

O asvamedha e a suserania

O poder mágico que impregna o rei, durante sua consagração, era restaurado e fortalecido durante o seu reinado por diversos ritos, como o cerimonial de rejuvelhecimento do vajapeya e o sacrifício do cavalo (asvamedha), que não era apenas ministrado por ambição e arrogância, mas também porque assegurava prosperidade e fertilidade ao reino. Estava implícito em todos os rituais bramânicos a ideia do apontamento divino do rei.

Imagem: Ilustração do Ramayana feita por Sahib Din (1652). Demonstra o ritual do asvamedha executado por Kausalya
Os reis da época épica e heróica relevavam esses sacrifícios. O Satapha Bramana faz uma referência ao asvamedha de Bharata, filho de Dusyanta e Pituga. Na obra também consta uma lista de 13 reis que celebraram o asvamedha, este era constituío de sacrifícios políticos sancionados pelo costume religioso.

Muitos reis do período histórico realizaram o asvamedha, um sacrifício que surgiu para reconhecer a suserania de um monarca e simbolizar seu "governo supremo". Tornou-se costume que reis de grande talento deveriam fazer o ritual para conquistar a Terra. O asvamedha era uma proclamação pública do monarca de que ele não era apenas um governante secular, e sua pretensão de conquistar o mundo não teria apenas conotações materiais. Era um aviso aos outros monarcas, de que deveriam reconhece-lo como suserano. Ou seja, havia a religião de um lado e o prestígio de outro dominavam a performance do deste sacrifício. O asvamedha estabeleceria proeminência do monarca dentro do império (samrajya).

O asvamedha era um desafio com o objetivo de impressionar os poderes políticos existentes. O cavalo do monarca conquistador era liberado para perambular por um período de um ano. Se nenhum poder político o capturasse, significava estes reis menores tornaram-se vassalos do raja conquistador. Se o cavalo fosse capturado por um outro líder, este seria visto como um oponente. O conquistador enviaria seu exército ou comandaria uma expedição para derrotar seu inimigo e recapturar seu cavalo. Depois, o sacrifício seria realizado e o rei aclamado como o "grande suserano".

O ritual do Asvamedha

Enquanto o cavalo e seus protetores não retornassem, o povo esperava ansiosamente. Oferendas diárias eram realizadas em homenagem à Savrtdeva, durante este período o cavalo era associado ou identificado com o sol ou com o ano solar. Ao transcorrer de todo o ano, eram organizadas festas com músicas, soma e representações de peças de teatro. Ritos especiais eram feitos se o animal copulasse ou ficasse doente; se o cavalo morresse, seria substituído por outro. Depois do final do ano, o cavalo retornava, apenas aqueles que tivessem acompanhado o animal durante toda expedição poderiam compartilhar dos poderes que derivavam da performance do asvamedha. O rei era consagrado e uma cerimônia de três dias iniciava-se. O cavalo sacrificial e mais outros três, todos ricamente adornados, eram arreados à uma carroagem, levados à área sacrificial e aí soltos. A Rainha Consorte untava a parte dianteira do cavalo, a esposa favorita do rei mais duas esposas cuidavam da parte traseira do animal. A quarta esposa, por ventura, somente assitiria o sacrifício. Posteriormente, o cavalo era arreado à uma estaca junto com uma cabra. Centenas de outros animais eram amarrados em estacas para o sacrificio.

Durante o rito, acreditava-se que o cavalo tomaria a forma de um grande pássaro que voaria até o céu. Um pano de ouro era estendido no local onde o cavalo seria sacrificado, a faca de ouro era usada para matá-lo, porque este metal representava a aristocracia. Facas de outros metais eram utilizadas para matar os demais animais, representando a comunidade. As quatro mulheres, mais uma garota e 400 atendentes eram levadas junto aos animais mortos. A Rainha Consorte deitava-se junto ao cavalo e um pano era colocado sobre eles. Coberta pelo tecido, a Rainha encenava atos de bestialidade com o animal. O cavalo era identificado com o deus Prajapati e a rainha através desta cerimônia era impregnada com a semente da deidade. A crença da copulação mímica como fonte de fertilidade, era comum em diversas culturas e o cavalo era associado com o sol, a fertilidade e a água. Depois da Rainha Consorte surgir com uma túnica, o cavalo era dissecado. Em seguida, realizava-se diversos outros ritos, onde todos os sacerdotes participavam, algumas partes do cavalo eram assadas e oferecidas para Prajapati, as outras eram oferecidas para os presentes. A cerimônia terminava com um banho de purificação e a consequente oferta de presentes (daksina) aos sacerdotes. A daksina poderia ser a pilhagem conseguida durante a viagem do cavalo, o que, as vezes, incluiria algumas serventes.

A performance do asvamedha cessou a cerca de mil anos. A reação de budistas e jainistas contra a matança de animais pode ter sido fundamentais para o fim desta prática. Durante a Dinastia Sunga, fundada por Pusyamitra (187-151 a.C.), um general do último rei Maurya Brhadratha, houve um revival do sacrifício em grande escala. Para comemorar a vitória de seus filhos e netos sobre os sucessores gregos de Alexandre, Pusyamitra ordenou a performance de dois asvamedhas. Novamente, o sacrifício entrou em suspensão durante a dinastia Kusana, mas voltou a ser realizado no século V a.C., pela dinastia Gupta e novamente no século VII, por Adityasena Gupta. Samudragupta (330-375 d.C.), o segundo imperador gupta, realizou um asvamedha e lançou moedas comemorativas. Um dos raros relatos sobre a performance do asvamedha é o de Sivaskanda Varman, da dinastia Pallava, mencionado como "o rei justo dos reis", outro relato é o de Pulakesinda, da dinastia Calukya (século VI d.C.). Um das últimas performances do asvamedha ocorreu em Orissa, no século IX d.C., realizado por Sawai Jayasimha, o Maharaja de Jaipur.


Imagem: Moedas comeorativas do asvamedha de Samudragupta (335-370)

Fonte: http://www.nupam.com/

O asvamedha era realizado com grande jubilo, acreditava-se que a realização de cem destes sacrifícios poderia levar à realização do "trono" ou do "mundo de Indra". O deus Indra tentaria prevenir a realização de um possível centésimo sacrifício, porque isto lhe causaria sérias ameaças. Como a performance do sacrifício durava pelo menos um ano, não há nenhum relato de que algum rei teria realizado 100 asvamedha (o que seia humanamente impossível), há apenas casos de reis que mataram 100 cavalos durante uma única cerimônia. Entretanto alguns autores acreditam que não ocorria a matança de cavalos ou de outros animais durante a realização do asvamedha.

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