segunda-feira, 31 de maio de 2010

Aśvamedhá: o sacrifício do cavalo

A origem da monarquia e os sacrifícios reais

No final do período Vêdico, as tribos arianas já estavam consolidadas em pequenos reinos, não haviam perdido todo o seu carater tribal, mas já possuíam capitais permanentes e um sistema administrativo rudimentar. As antigas assembléias tribais poderiam ser consultadas esporadicamente, mas seu poder diminuia rapidamente, no final deste período a autocracia do rei era apenas limitada pelos seguintes fatores: o poder dos brâmanes, o peso da tradição e a força da opinião pública, que sempre teve grande influência na Índia antiga. As divisões políticas baseadas no parentesco deram lugar às baseadas na geografia. Isso aliado à uma forte sensação de insegurança, pode ter sido um importante fator para o crescimento do ascetismo e de uma visão pessimista do mundo.

Este período testemunhou o desenvolvimento do culto sacrificial, que ganhou importância com a ascensão das pretensões reais. Boa parte da literatura brâmane era devotada às instruções para a performance meticulosa dos novos sacrifícios reais, não mencionados no Rgveda. Entre eles estavam o rajasuya, ou "consagração real", e o vajapeya ou "bebida da força", uma espécie de cerimônia de rejuvelhecimento, que não apenas restaurava as forças vitais do rei de meia-idade, mas o fazia ir do estatuto de raja para o de samrat ("monarca completo"), suserano de diversos reis menores. O mais famoso e significativo de todos os novos sacrifícios foi o asvamedha, ou o "sacrifício do cavalo".

A mais antiga lenda sobre a origem da monarquia no Aitareya Brâmana, um dos últimos textos vêdicos, talvez do século VIII ou VII a.C. O texto conta como deuses e demônios estavam em guerra e como os primeiros sofriam nas mãos dos seus inimigos. Os deuses reuniram-se e decidiram que precisavam de um raja (rei) para liderá-los na batalha. Escolheram Indra como seu rei e em pouco tempo reverteram a guerra. A lenda sugere que, no início, a monarquia na Índia foi elaborada pelas necessidades humanas e militares e a principal tarefa do rei era liderar seus súditos na guerra. Um pouco mais tarde o Taittiriya Upanisad repetiu a história, mas algumas alterações; por desconfiança, os deuses não elegeram Indra, mas fizeram um sacrifício ao grande deus Prajapati, que enviou seu filho Indra para se tornar rei. Neste estágio o rei ainda era visto como um líder militar. - "aqueles que não possuem rei, não podem lutar" dizia o texto - assim a monarquia teria uma sanção divina e o rei dos imortais, que era o protótipo de todos os reis terrenos, possuia seu estatuto por indicação de uma entidade maior.

Nesta época, o rei era exaltado acima dos mortais ordinários, através do poder mágico dos grandes sacrifícios reais. A Consagração Real (rajasuya), que na sua forma completa era uma série de sacrifícios que duravam cerca de um ano, imbuía o rei de um poder divino. Durante as cerimônias ele era identificado com Indra "porque ele era ksatriya e e porque ele era um sacrificador", e mesmo com o deus maior Prajapati. Ele dava três passos numa pele de tigre e assim era magicamente identificado com o deus Visnu, que com três passos percorreu a Terra e o Céu. O sumo-sacerdote dirigia aos deuses as seguintes palavras: "Do grande poder é ele que deve ser consagrado; agora ele se tornou um dos seus; você deverá protege-lo". O rei era evidentemente um "companheiro dos deuses", se não um próprio deus.

O asvamedha e a suserania

O poder mágico que impregna o rei, durante sua consagração, era restaurado e fortalecido durante o seu reinado por diversos ritos, como o cerimonial de rejuvelhecimento do vajapeya e o sacrifício do cavalo (asvamedha), que não era apenas ministrado por ambição e arrogância, mas também porque assegurava prosperidade e fertilidade ao reino. Estava implícito em todos os rituais bramânicos a ideia do apontamento divino do rei.

Imagem: Ilustração do Ramayana feita por Sahib Din (1652). Demonstra o ritual do asvamedha executado por Kausalya
Os reis da época épica e heróica relevavam esses sacrifícios. O Satapha Bramana faz uma referência ao asvamedha de Bharata, filho de Dusyanta e Pituga. Na obra também consta uma lista de 13 reis que celebraram o asvamedha, este era constituío de sacrifícios políticos sancionados pelo costume religioso.

Muitos reis do período histórico realizaram o asvamedha, um sacrifício que surgiu para reconhecer a suserania de um monarca e simbolizar seu "governo supremo". Tornou-se costume que reis de grande talento deveriam fazer o ritual para conquistar a Terra. O asvamedha era uma proclamação pública do monarca de que ele não era apenas um governante secular, e sua pretensão de conquistar o mundo não teria apenas conotações materiais. Era um aviso aos outros monarcas, de que deveriam reconhece-lo como suserano. Ou seja, havia a religião de um lado e o prestígio de outro dominavam a performance do deste sacrifício. O asvamedha estabeleceria proeminência do monarca dentro do império (samrajya).

O asvamedha era um desafio com o objetivo de impressionar os poderes políticos existentes. O cavalo do monarca conquistador era liberado para perambular por um período de um ano. Se nenhum poder político o capturasse, significava estes reis menores tornaram-se vassalos do raja conquistador. Se o cavalo fosse capturado por um outro líder, este seria visto como um oponente. O conquistador enviaria seu exército ou comandaria uma expedição para derrotar seu inimigo e recapturar seu cavalo. Depois, o sacrifício seria realizado e o rei aclamado como o "grande suserano".

O ritual do Asvamedha

Enquanto o cavalo e seus protetores não retornassem, o povo esperava ansiosamente. Oferendas diárias eram realizadas em homenagem à Savrtdeva, durante este período o cavalo era associado ou identificado com o sol ou com o ano solar. Ao transcorrer de todo o ano, eram organizadas festas com músicas, soma e representações de peças de teatro. Ritos especiais eram feitos se o animal copulasse ou ficasse doente; se o cavalo morresse, seria substituído por outro. Depois do final do ano, o cavalo retornava, apenas aqueles que tivessem acompanhado o animal durante toda expedição poderiam compartilhar dos poderes que derivavam da performance do asvamedha. O rei era consagrado e uma cerimônia de três dias iniciava-se. O cavalo sacrificial e mais outros três, todos ricamente adornados, eram arreados à uma carroagem, levados à área sacrificial e aí soltos. A Rainha Consorte untava a parte dianteira do cavalo, a esposa favorita do rei mais duas esposas cuidavam da parte traseira do animal. A quarta esposa, por ventura, somente assitiria o sacrifício. Posteriormente, o cavalo era arreado à uma estaca junto com uma cabra. Centenas de outros animais eram amarrados em estacas para o sacrificio.

Durante o rito, acreditava-se que o cavalo tomaria a forma de um grande pássaro que voaria até o céu. Um pano de ouro era estendido no local onde o cavalo seria sacrificado, a faca de ouro era usada para matá-lo, porque este metal representava a aristocracia. Facas de outros metais eram utilizadas para matar os demais animais, representando a comunidade. As quatro mulheres, mais uma garota e 400 atendentes eram levadas junto aos animais mortos. A Rainha Consorte deitava-se junto ao cavalo e um pano era colocado sobre eles. Coberta pelo tecido, a Rainha encenava atos de bestialidade com o animal. O cavalo era identificado com o deus Prajapati e a rainha através desta cerimônia era impregnada com a semente da deidade. A crença da copulação mímica como fonte de fertilidade, era comum em diversas culturas e o cavalo era associado com o sol, a fertilidade e a água. Depois da Rainha Consorte surgir com uma túnica, o cavalo era dissecado. Em seguida, realizava-se diversos outros ritos, onde todos os sacerdotes participavam, algumas partes do cavalo eram assadas e oferecidas para Prajapati, as outras eram oferecidas para os presentes. A cerimônia terminava com um banho de purificação e a consequente oferta de presentes (daksina) aos sacerdotes. A daksina poderia ser a pilhagem conseguida durante a viagem do cavalo, o que, as vezes, incluiria algumas serventes.

A performance do asvamedha cessou a cerca de mil anos. A reação de budistas e jainistas contra a matança de animais pode ter sido fundamentais para o fim desta prática. Durante a Dinastia Sunga, fundada por Pusyamitra (187-151 a.C.), um general do último rei Maurya Brhadratha, houve um revival do sacrifício em grande escala. Para comemorar a vitória de seus filhos e netos sobre os sucessores gregos de Alexandre, Pusyamitra ordenou a performance de dois asvamedhas. Novamente, o sacrifício entrou em suspensão durante a dinastia Kusana, mas voltou a ser realizado no século V a.C., pela dinastia Gupta e novamente no século VII, por Adityasena Gupta. Samudragupta (330-375 d.C.), o segundo imperador gupta, realizou um asvamedha e lançou moedas comemorativas. Um dos raros relatos sobre a performance do asvamedha é o de Sivaskanda Varman, da dinastia Pallava, mencionado como "o rei justo dos reis", outro relato é o de Pulakesinda, da dinastia Calukya (século VI d.C.). Um das últimas performances do asvamedha ocorreu em Orissa, no século IX d.C., realizado por Sawai Jayasimha, o Maharaja de Jaipur.


Imagem: Moedas comeorativas do asvamedha de Samudragupta (335-370)

Fonte: http://www.nupam.com/

O asvamedha era realizado com grande jubilo, acreditava-se que a realização de cem destes sacrifícios poderia levar à realização do "trono" ou do "mundo de Indra". O deus Indra tentaria prevenir a realização de um possível centésimo sacrifício, porque isto lhe causaria sérias ameaças. Como a performance do sacrifício durava pelo menos um ano, não há nenhum relato de que algum rei teria realizado 100 asvamedha (o que seia humanamente impossível), há apenas casos de reis que mataram 100 cavalos durante uma única cerimônia. Entretanto alguns autores acreditam que não ocorria a matança de cavalos ou de outros animais durante a realização do asvamedha.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O Confucionismo no Vietnã Nguyễn

Imagem: Palácio Thai Hoa na Cidadela Imperial (Huế, Vietnã)

Fonte: Diogo Farias

A Dinastia Nguyễn governou o Vietnã de 1802 a 1945, entretanto abordaremos neste post o período entre 1802 e 1848, para assim caracterizar o Estado Nguyễn anterior a colonização francesa. Como foi trabalhado no post anterior vimos que a civilização chinesa influenciou a cultura vietnamita - apesar do Vietnã desenvolver seu próprio conceito de Estado-nação -, agora veremos como o Estado Nguyễn foi influênciado pelo Confucionismo e pela organização burocrática Qing.

Minh Mạng comparava o Vietnã com as antigas cidades-estados da época dos Zhou, demonstrando a ideia de que participava de uma grande comunidade confuciana formada pelo Vietnã, China, Japão e Coréia. A monarquia vietnamita combinava duas diferentes tradições políticas: o centralizante mandato do “Filho do Céu” chinês e a menos centralizante “liderança comunal”. Gia Long (1802-1820), Minh Mạng (1820-1841) e Thiệu Trị (1841-1847) utilizaram conceitos chineses de doutrina política. Os três adotaram o titulo de hoàng đế (Huangdi), expressão sino-vietnamita usada como título imperial e que retratava o caráter divino dos imperadores da China tradicional. Outro termo de origem chinesa usado pelos Nguyễn foi o thiên tự (tianzi) ou “Filho do Céu”.

Os imperadores Nguyễn adotaram teorias políticas chinesas para a legitimar o seu poder, porém diferenciavam-se dos imperadores chineses através da teoria da dupla soberania. Além do uso do título
hoàng đế, de origem chinesa, os imperadores Nguyễn utilizaram o termo vua, uma criação vietnamita. Este termo era comumente utilizado pelos camponeses para se referirem a uma espécie de figura protetora, não existindo um termo similar em chinês. O vua estava mais próximo do quotidiano dos camponeses vietnamitas do que o huangdi estava perante o dos chineses. Com a combinação destas duas tradições, os três deveres do líder vietnamita eram: resistir a dominação política da Corte chinesa, preservar o bem-estar e modo de vida do povo, introduzir e “vietnamizar” a cultura chinesa.

O imperador era o líder religioso, o legislador e o juiz supremo, mas sua autoridade possuía certos limites. A mais importante era a noção confuciana do Mandato Celeste (
thiên mạng): o imperador era o Filho do Céu (thiên tự), investido por um “mandato” para manter a ordem cósmica, desta forma, não reinava pelo bem de seus súditos, mas era o “pai e mãe” de seu povo. As calamidades públicas eram interpretadas como um aviso do Céu: o imperador era responsabilizado pessoalmente pela sua injustiça e tirania, provocando a miséria e a desordem; se falhasse em sua missão, o governante perdia o Mandato Celeste e o povo teria o direito de revolta. O segundo limite era a autonomia comunal: a comuna () forma uma unidade religiosa, política e económica centrada na autoridade da casa da comuna (poder local). Desde a conquista da sua autonomia no século XVIII, o vua deveria respeitar os costumes de cada comuna. Os assuntos internos de cada comuna eram discutidos pelo Conselho dos Notáveis. A hierarquia e a unidade dos poderes era um constante jogo de controles e contrapoderes entre a autoridade dos mandarins e dos líderes comunais.

Nos primeiros 40 anos do século XIX, os Nguyễn promoveram duas grandes reformas nacionais, a primeira conduzida por Gia Long e a segunda por Minh Mạng. Ambos compartilhavam um objetivo comum: encontrar uma forma de organizar e governar uma nação com um território grande, como nunca haviam dominado anteriormente, e os dois reis utilizaram medidas diferentes para tentar cumprir seus objetivos.

Gia Long formou sua personalidade durante a guerra civil contra os Tây Sơn (1771-1801), sendo menos influenciado pelo pensamento confuciano em comparação aos seus sucessores. Em 1802, proclamou-se imperador e em seguida ordenou a construção de uma cidade proibida vetnamita em Huê. A cidadela imperial teve sua construção influenciada pelos princípios da geomância chinesa, e foi inagurada em 1805. Organizou seu governo central como na época dos Lê, através dos seis ministérios. O Ministério Pessoal escolhia os funcionários, conferia os títulos, redigia os éditos e as patentes. O Ministério das Finanças cuidava do tesouro público, da coleta dos impostos e da fixação dos preços. O Ministério dos Ritos organizava as cerimónias e os exames. O Ministério das Armas recrutava os soldados e velava pela conservação da ordem. O Ministério da Justiça ocupava-se das leis, das penas e da revisão dos processos. O Ministério dos Trabalhos Públicos cuidava da construção das obras públicas, cidadelas e juncos de guerra.

Imagem: Porta Ngo Mon na Cidadela Imperial (Huế, Vietnã), nota-se a semelhança com a Cidade Proibida de Beijing
Fonte: Diogo Farias

Imagem: Cidade Proibida (Beijing, China)
Fonte: Diogo Farias

Os ministérios eram dirigidos por um presidente, dois vice-presidentes e dois assessores. Este conselho tomava as decisões e o desentendimento de um único membro causava a necessidade de levar o caso ao soberano. Além dos ministérios havia o Tribunal dos Censores, que era encarregado de formular relatórios sobre o comportamento dos funcionários da Corte e das províncias; inspecionando todo o sistema administrativo e relatando-o ao imperador.

Imagem: A Organização da Burocracia Vietnamita
Fonte: WOODSIDE, Alexander, Vietnam and the Chinese Model: A Comparative Study of the Vietnamese and Chinese Civil Government in the First Half of the Nineteenth Century (Cambridge: Havard University Press, 1988).

Gia Long não desenvolveu mais a centralização do poder, para não suscitar reações locais em um país recentemente unificado. A Corte Real implementou uma reforma na organização do aparato estatal e da rede administrativa. Dividiram o país em três zonas, de acordo com diferenças regionais e culturais. As localidades adjacentes à capital ficaram em controle direto da Corte. O Norte (Đông Kinh) e o Sul (Gia Định) eram zonas especiais administradas por autoridades representando a Corte, mas que controlavam estas regiões com grande poder e autonomia.

No Norte, onde a conquista ainda era recente, Gia Long tentou ganhar a população através de várias medidas: exonerações de impostos, distribuição de terras e atribuição de títulos honoríficos aos descendentes dos Lê e dos Trịnh. O governo-geral do Norte chamava-se Bắc Thành e estava dividido em treze
trấn. Nas províncias do delta, o imperador escolhia como funcionários os antigos magistrados dos Lê, enquanto nas outras a administração ficava com chefes locais.

O governo-geral do Sul chamava-se Gia Định Thành e estava dividido em apenas cinco
trấn. O Bắc Thành e o Gia Định Thành eram administrados por um governador-geral e os trấn eram divididos em prefeituras, sub-prefeituras, sub-prefeitura de montanha, cantão e comuna. Desde o século XVIII, a administração dos cantões e das comunas estavam confiadas à seus próprios eleitos (líderes locais).

O governo de Gia Long produziu duas contradições insolúveis: a) de um lado, o Imperador queria concentrar o poder em suas mãos; de outro, foi forçado a compartilhar seu poder com os dois governadores-gerais, em Đông Kinh e em Gia Định. b) o Imperador queria prosseguir uma política de portas abertas para os países ocidentais, mas tinha que respeitar as práticas confucianas. Por causa destas contradições o sucesso de suas políticas foi consideravelmente diminuído.

Em 1820, quando Minh Mạng subiu ao poder, o domínio dos Nguyễn já estava solidificado. Neste contexto, o Imperador tentou resolver estas contradições a sua maneira, iniciando novas reformas. Minh Mạng eliminou o sistema tripartido e dividiu o país em 31 províncias diretamente ligadas ao poder central, através de um regime centralizado e autoritário. Sua administração tomou especial atenção em usar a lei para preservar a ordem social e para a integração da burocracia. Os dois governadores-gerais, que possuíam uma certa independência, foram suprimidos. Em cada
tỉnh (província) a autoridade ficou a cargo de um militar e de um oficial civil.

Imagem: o "Grande Trono" do Palácio Thai Hoa da Cidadela Imperial (Huế, Vietnã)
Fonte: Diogo Farias

Rapidamente as forças regionalizantes iniciaram uma oposição contra as reformas centralizadoras de Minh Mạng. Lê Văn Duyệt, antigo comandante militar na guerra contra os Tây Sơn, era contra a indicação de Minh Mạng como príncipe herdeiro. Quando Minh Mạng subiu ao poder, logo tratou de se livrar do seu opositor, enviando-o de volta para Gia Định. Em 1833, logo após a morte de Lê Văn Duyệt, uma grande revolta tomou conta do Sul do império, contra os esforços da Corte Nguyễn em abolir as autonomias regionais. A revolta foi liderada por Lê Văn Khôi, que era filho adotivo de Lê Văn Duyệt. O líder da revolta pediu apoio aos missionários ocidentais e para o Sião; seu objetivo era proclamar o filho do Príncipe Cảnh, primeiro filho do Imperador Gia Long, governante legítimo do Vietname. Khôi morreu em 1834, em Saigão, e sua revolta durou até o ano seguinte. Esta crise política foi consequência do faccionismo que surgira dentro da Corte Nguyễn e das medidas centralizadoras de Minh Mạng.

Os mandarins formavam o quadro geral da administração e tinham acesso aos cargos através de exames públicos. Estes oficiais públicos possuíam muitas regalias, por exemplo, a família de um funcionário estava isenta do pagamento de impostos e do serviço militar. Os concursos regionais e centrais ocorriam a cada 3 anos, sem distinção de origem social. Todos os letrados apresentavam-se para os concursos, somente aqueles que fossem aprovados adquiriam uma função pública. A média era de 50 aprovados em cada dez mil candidatos, uma taxa de aprovação de 0,5%.

Os Nguyễn recebiam algumas embarcações de mercadores estrangeiros, porém estes estavam subordinados a condições bem precisas. Certos portos cobravam taxas aduaneiras e os estrangeiros deviam apresentar uma lista de mercadorias, para que sua entrada fosse permitida. Não era permitido comprar certos produtos, como arroz ou circular livremente pelo país. Os particulares eram desencorajados do comércio e o Estado negava o direito a posse de armas, o que piorava ainda mais as condições de comércio. O monopólio real não aniquilou o comércio privado através da intermediação de mercadores chineses, que continuaram operando clandestinamente, controlando o comércio do Vietnã e do Sião.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A identidade nacional vietnamita


Os vietnamitas são descendentes de duas tribos que viviam ao sul do rio Yangtze (Yangzi Jiang/Chang Jiang), Lạc Việt e Âu Việt, que pertenciam ao grupo cultural conhecido na China como yue. No século III a.C., os Lạc Việt e os Âu Việt fundaram em conjunto o reino Âu Lạc, considerado o primeiro Estado da história vietnamita.

No século II a.C., o reino de Âu Lạc foi conquistado pelos chineses da Dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), iniciando um ciclo de mais de dez séculos de colonização chinesa (111 a.C-939 d.C.). Os chineses controlaram os distritos, porém o poder de fato estava nas mãos dos líderes comunais. As vilas mantinham quase que intactas suas tradições, modo de vida e cultura. A luta do povo vietnamita pela sua emancipação nutriu uma imensa vontade de controlar o seu país, proteger sua cultura e sua raça.

Com a conquista dos territórios yue, os han descobriram uma civilização rizícula pouco diferente da sua, o que facilitou a implementação do sistema chinês de administração. A região do delta do rio Vermelho não presenciou uma chegada massiva de imigrantes chineses. Pode-se afirmar que o Fujian já havia absorvido boa parte das populações han voluntárias à imigração. O Império Han não tinha estrutura suficiente para novos movimentos populacionais e por fim colonizar o norte do Vietnã. Chegaram apenas alguns mandarins em meio uma vasta população yue, o que ajudou a conservar a identidade étnica da região.

Imagem: Império Han
Fonte: EBREY, Patricia, Buckly, Cambridge Illustrated History of China (Cambridge: Cambidge University Press, 1999).

Se a cultura vietnamita foi extremamente influenciada pela cultura chinesa, o Vietnã conservou uma composição étnica maioritariamente yue. Diferentemente de seus vizinhos cantoneses, que são fruto da miscigenação entre os yue e os han, os vietnamitas passaram a classificar-se como kinh, cultivando sua diferença étnica e desenvolvendo um sentimento nacional independente. Este ponto é essencial para compreender a identidade distinta que emergiu dentro da elite sino-vietnamita. Ou seja, nos territórios onde hoje encontram-se as atuais províncias chinesas do Fujian e do Guangdong houve uma grande miscigenação que ajudou a incorporação das populações yue da região ao Império Chinês - os próprios cantoneses orgulham-se por ser descendentes dos Tang (época onde vieram as principais vagas colonizadoras) e do cantonês ser o "dialeto" mais próximo ao chinês antigo; na verdade esta atitude é um mecanismo de defesa contra as minorias étnicas da região. Entretanto, o Vietnã, durante o período de domínio chinês, recebeu poucos imigrantes han, assim apesar da receber uma grande influência da cultura chinesa, pode desenvolver uma identidade e um conceito de nação próprios.

A relação entre Vietnã e China evoluiu ao longo dos séculos em função dos ciclos dinásticos do Império Chinês. Durante o período de usurpação do trono chinês por Wang Mang (9 d.C-23d.C.), o Império enfrentou várias crises interiores que possibilitaram o surgimento das primeiras rebeliões no Vietnã. Até a independência do país, as revoltas vietnamitas foram paralelas aos períodos de fraqueza do Império Chinês. Quando ocorriam crises e trocas dinásticas na China, os vietnamitas aproveitavam para rebelarem-se contra o julgo chinês.

Com a Dinastia Tang (618-907), o poder chinês controlou as revoltas e voltou a anexar o norte do Vietnã, conhecido como Annam (Sul Pacífico). O Império Chinês teve que manter um exército muito grande para manter a paz civil e evitar invasões dos cham e do reino tibeto-birmano Nanzhao. O custo de manutenção deste grande exército contribuiu para agravar a crise econômica que levou ao enfraquecimento da Dinastia Tang. Em 868, com a falta de pagamento dos salários, o exército estacionado na fronteira com o reino Nanzhao rebelou-se dando início à uma guerra civil. A China dividiu-se em diversos principados que reivindicavam o poder imperial, mas que não controlavam mais do que uma ou duas privíncias. Durante esta época conturbada, os vietnamitas lutaram por sua emancipação. A independência do Vietnã ocorreu em 939, depois da vitória de Ngô Quyền, às margens do rio Bạch Đằng.

Imagem: Império Tang
Fonte: Fonte: EBREY, Patricia, Buckly, Cambridge Illustrated History of China (Cambridge: Cambidge University Press, 1999).

A Dinastia Song (960-1278) tentou reconquistar o norte do Vietnã. É provável que os imperadores Song não diferenciassem a antiga província de Annam das outras regiões rebeldes do sul da China. Com a derrota da expedição punitiva de 981, os Song reconheceram o Vietnã como um Estado vassalo. Os imperadores Song perderam o interesse pelo Vietnã e tornaram sua atenção para a fronteira norte do império - preocupados com o avanço mongol. Sua dinastia acabou em 1279, com o estabelecimento da dinastia mongol Yuan; numerosos civis, militares e funcionários chineses partiram para o exílio, muitos foram para o Vietnã, onde a dinastia indígena Trần (1225-1400) os autorizou a instalarem-se definitivamente.

Do século X em diante, o espírito comunal e a soberania nacional desenvolveram-se para a formação de um Estado-nação. A ênfase na terra-natal é a essência da cultura vietnamita, trata-se de um conceito não encontrado na doutrina confuciana , que descreve o comportamento do homem perante o "Céu", definindo seu papel na comunidade e não num país ou tera-natal.

A base da ideologia sociopolítica confuciana é o respeito do filho perante o pai, do súdito perante o líder e da mulher em relação ao marido. Mas no Vietnã, essas “obrigações” dividem-se entre pequenas e grandes. As pequenas são o respeito e a obediência aos pais, enquanto a grande é a devoção à sua terra-mãe e ao seu povo. “Lealdade” significa crença no país, nos direitos e interesses do Estado-nação. O conceito vietnamita de Estado-nação está relacionado com a terra-mãe ou a terra-natal. Sucessivas invasões contra o Estado independente do Vietnã por parte dos chineses, serviram para fortalecer o espírito de soberania nacional.

Mais tarde os chineses tentaram reconquistar o norte do Vietnã, o Imperador Yongle, com a desculpa de retirar um usurpador do trono vietnamita, enviou uma expedição com um propósito bem definido: reconquistar a província de Annam. Assim os Ming poderiam restabelecer seus direitos históricos, baseados nas fronteiras estabelecidas durante a Dinastia Han, quase 1500 anos antes. Entre 1407 e 1427, o exército chinês ocupou o Vietnã, com o pretexto de ajudar a Dinastia Trần controlar a rebelião que assolava o reino. Os senhores Lê lideraram as tropas que derrotaram a força de ocupação chinesa Ming e fundaram a Dinastia Lê Posterior (1428-1592). Os Qing se envolveram num episódio fatídico quando tentaram reconquistar o Vietnã. Após o início da Rebelião Tây Sơn, em 1771, o imperador Lê pediu ajuda aos seus suseranos chineses e em 1788, os Qing enviaram uma expedição punitiva contra os Tây Sơn. Tratava-se de uma boa oportunidade para o Império Qing conquistar o seu vizinho Vietnã, mas as tropas chinesas foram derrotadas pelo exército do Imperador Tây Sơn, Quang Trung, forçando os chineses a reconhecer a dinastia usurpadora.

Imagem: A lenda conta que no inicio do seculo XV, durante a ocupação Ming, o general Lê Lợi recebeu de uma tartaruga dourada, uma espada mágica. com a ajuda desta espada, Lê Lợi expulsou os chineses e tornou-se o Imperador Lê Thái Tổ. Posteriormente a tartaruga reapareceu no parque e pediu sua espada de volta. Desde então, o lago ficou conhecido como Hồ Hoàn Kiếm, ou o Lago da Espada Restaurada (Hanói, Vietnã).
Fonte: Diogo Farias

Desde muito, os vietnamitas mantiveram uma identidade claramente distinta, cultivando um forte sentimento nacional. Depois de conseguir sua independência, não rejeitaram os elementos da cultura chinesa, importados depois das primeiras invasões dos exércitos Han. Casamentos entre mulheres vietnamitas e soldados, funcionários ou exilados políticos chineses ajudou a desenvolver uma elite sino-vietnamita e uma perspectiva própria da civilização chinesa, através de um ponto de vista regional influenciado pelo legado indígena. Os vietnamitas assimilaram técnicas e conceitos chineses, integrando-os à sua visão de mundo. No próximo post, veremos mais detalhadamente a influência chinesa na organização política vietnamita.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O Filho do Céu

Imagem: Salão da Harmonia Suprema (Cidade Proibida, Beijing), é o maior salão do palácio, usado nas ocasiões mais solenes, como a coroação do imperador
Fonte: Diogo Farias


Depois de sua experiência na China, durante o domínio mongol, Marco Polo descreveu o Grande Khan, Khubilai, como “o homem mais poderoso do mundo, tanto em relação ao respeito de seus súditos, quanto ao seu território ou tesouro”. Os imperadores chineses não tinham apenas a responsabilidade de governar o seu território e as populações que viviam dentro dele, mas também deviam assegurar que sua própria conduta promoveria a “ordem natural”. A função do Filho do Céu desenvolveu-se através de três mil anos, desde o período dos reis Shang, cujos ritos funerários eram acompanhados por sacrifícios de homens e cavalos que os serviriam em suas vidas pós-morte, até o triste fim de Puyi, o último imperador Qing.

Alguns conceitos de soberania surgiram na Antiguidade e permaneceram até o século XX. O dogma mais importante atribuído à Confúcio (Kong Fuzi) tornou-se a justificação cósmica da doutrina imperial chinesa: como não há dois sóis no céu, então não haveria dois Filhos do Céu na terra. Segundo esta doutrina, o imperador (Huangdi) - ou, dependendo do caso, o rei (Wang) - não era apenas o governante da China, mas o soberano de “tudo abaixo do Céu”. Todos os povos deveriam simplesmente esperar o momento em que receberíam os benefícios da ordem do Filho do Céu (Tianzi).

Outra antiga doutrina afirmava que o governante possuía sua posição através do Mandato Celestial (Tianming), que poderia ser retirado de seu detentor, se este não correspondesse às expectativas que seu cargo exigia. A perda do Mandato Celestial poderia ocorrer por meio de desastres naturais ou rebeliões populares. Os soberanos que fossem substituídos, eram caracterizados como péssimos governantes pelos historiadores da dinastia seguinte, enquanto os atos dos fundadores da nova dinastia eram vistos como auspiciosos.

Outra importante função do imperador era assegurar a ordem cósmica. Sua conduta e seus rituais diários eram executados para este fim. Alguns imperadores trabalhavam por horas e atuavam na administração imperial, mas a tradição cosmológica pregava que os assuntos práticos deveriam ser deixados para os burocratas. O imperador deveria ser visto como a personificação das virtudes que garantiriam o respeito do povo, ou seja, a conduta moralmente correta do imperador serviria como exemplo a ser seguido por todos . Em relação à administração prática, o imperador deveria apenas apontar seus ministros. Na China, a burocracia era eventualmente recrutada através de exames públicos, principalmente a partir da Dinastia Song (960-1279).

Os modelos tradicionais

O estudo da Antiguidade permite-nos descobrir as fontes do ideal civil chinês. Para Confúcio e Mêncio (Meng Zi), pensadores do final do período Zhou, cujas ideias foram influentes no pensamento político chinês, um dos eventos mais importantes da História da China foi o estabelecimento da Dinastia Zhou no século XI a.C. Três personagens históricos, o rei Wen, o rei Wu e o Duque de Zhou foram determinantes para criação do ideal do bom governante. Wen significa “civilizado” e Wu “marcial”, os nomes desses personagens históricos provavelmente são póstumos. O caráter militar do rei Wu foi aprovado (vale lembrar que a tradição chinesesa valoriza mais a cultura e a civilização do que a violência), pois este tinha a finalidade de trazer a paz ao povo, enquanto o rei Wen era piedoso e preocupava-se com suas obrigações religiosas, protegia o seu povo e suas instituições eram exemplares. Ao rei Wen foi cultuado por demonstrar o caminho para derrotar e consquistar a dinatia Shang, porque o rei conseguia atrair o apoio popular através de suas virtudes, o que facilitou a conquista militar do rei Wu.


Imagem: Salão da Harmonia Protetora (Cidade Proibida, Beijing), usado para cerimônias de treinamento e no último estágio dos exames imperiais
Fonte: Diogo Farias

Para Mêncio, a força militar não era a resposta, o governante tinha que instituir medidas econômicas ideais para que os povos dos Estados vizinhos fossem atraídos, para depois unificar o território - suas escrituras remetem ao período em que o poder dos Zhou estava decadente e seu império foi dividido em Estados Guerreiros ou Estados Combatentes. A palavra wen originamente significa “listrado”,“ornamentado” ou “belo”, posteriormente passou a significar “civilização”, com o sentido de ser um adorno ou um refinamento da vida, que distinguia os chineses dos povos bárbaros. Desde muito cedo, o pensamento chinês defendia o comprometimento de seu governante em cultivar as artes civilizadas, que por fim diferenciava os chineses dos bárbaros e uniria a sua população junto à um governo benevolente.

Os filósofos do final do período Zhou deram substância aos mitos que relatavam antigos eventos, contando histórias sobre a sucessão de monarcas lendários que tornaram-se notáveis por cimentar os fundamentos da civilização chinesa. Destes heróis-culturais, o último foi You, o Grande, que salvou seu povo de uma imensa enchente, utilizando canais que conduziram as águas para o mar. You foi considerado o fundador da Dinastia Xia, que é tradicionalmente a predecessora da Dinastia Shang. Antes de You, vieram os reis Yao e Shun, este, um simples agricultor, conhecido por sua piedade-filial (uma tradição fortemente enraizada na cultura chinesa) foi escolhido como o sucessor de Yao. Outro importante herói-cultural foi Fuxi que teria inventado a escrita através do estudo de marcas em cascos de tartarugas, à Shennong foi creditado a invenção da agricultura e o Imperador Amarelo foi responsabilizado por diversas invenções como: o compasso, o barco, a carroça, o arco e flecha, a moeda e o calendário. Todos estes heróis míticos, mais os reis Wen e Wu, foram agregados à lista tradicional de governantes da História Imperial da China, sendo os principais exemplos de admiração e emulação para imperadores posteriores.

A doutrina do governo pela não-ação

Os filósofos Zhou, particularmente da escola confuciana, proveram outros elementos para compor a figura do governante ideal. Alguns relatos antigos afirmavam que a tarefa do soberano era governar através da não-ação, entretanto outros relatos consideravam que a não-ação era diligente e paternalista. A doutrina do governo pela não-ação teve origem em uma espécie de poder espiritual do Céu, através da eficácia deste poder é possível manter a ordem de “tudo abaixo do Céu”. O mesmo conceito de não-ação era um dos paradoxos centrais da filosofia taoísta, que acredita em um tipo de estado natural em que todos inconscientemente e sem nenhuma tipo de ação comportam-se conforme o Dao (Tao) ou a natureza do Dao. Mas entre os confucianos esta atitude desenvolveu uma crença na qual o governante ideal não era um administrador em prática, mas um líder moral perfeito, um exemplo para o povo. Neste raciocínio, eram os homens sábios que deveriam cuidar da administração.

Imagem: A Fênix simboliza a imperatriz e o Dragão representa o imperador (Palácio de Verão, Beijing)
Fonte: Diogo Farias

Mêncio comparou a tarefa dos ministros com a do artesão que trabalha com a jade. Como o ministro, ao artesão era confiado um material extremamente valioso, mas o rei não insistiria em dizer ao artesão como polir a jade - o próprio caractere que significa reino, Estado ou país, possui dentro dele o caractere de jade. A administração através de ministros sábios e virtuosos também indica que a aristocracia perdeu o monopólio do poder. Porém esta mudança na estrutura do poder foi gradual, somente durante a Dinastia Song os intelectuais substituiram os aristocratas na administração imperial.

O bem-estar do povo

A importância do povo é recorrente na literatura antiga, segundo Mêncio: “o povo é o mais importante, os espíritos da terra e dos grãos vem e seguida e o soberano é insignificante.” Xun Zi afirmava: “o príncipe é o barco e o povo era a água.” Confúcio dizia que a confiança do povo era mais importante para o governo do que o suprimento de armas e comida, conceito também defendido por Mêncio, quando afirmou que a harmonia entre o povo seria mais importante do que a defesa militar. Nestas circunstâncias, a principal responsabilidade do governante era proteger o povo para ganhar o seu suporte, desta maneira deveria cuidar do seu povo, como um pastor cria seu rebanho. Outro conceito bem difundido, era que o governante deveria atuar como pai e mãe do povo.

Mêncio e os confucianos Han afirmavam que o bem-estar econômico poderia ser a base para a promoção da moral popular. O governante tinha que prover as necessidades do povo para assegurar que a lei e a ordem prevalecesse entre seus súditos. Mêncio criticou governantes por não repartir seus prazeres com o povo, estes eram comparados com o benevolente rei Wen, que permitiu seus súditos usufruirem o seu parque privado. Outra preocupação de Mêncio eram às medidas econômicas que amparariam o povo em momentos de más colheitas.

O fundador da Dinastia Song tinha uma grande reputação como exemplo de modelo confuciano e seus sucessores eram cuidadosamente treinados para manter esta imagem. Os imperadores Qing foram um dos que mais se esforçaram para serem vistos como os verdadeiros monarcas confucianos: recebiam uma educação conforme a tradição confuciana, tentavam se projetar como intelectuais confucianos e promover o conceito de bem-estar do povo. Entretanto a grande maioria falhou em suas tentativas de atingir este ideal, todos os imperadores sabiam, que se falhassem, poderiam perder o Mandato do Céu. Catástrofes naturais, fomes e crises econômicas e rebeliões populares eram indícios de que a dinastia vigente estava em declínio e o Mandato do Céu estaria sob ameaça.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Para discutir o legado Otomano

Imagem: Mesquita Azul - Sultanahmet Camii (Istanbul, Turqua), construida entre 1609 e 1616.
Fonte: Diogo Farias


Até o final do século XVII, a Europa Central e Ocidental teve razões para temer a expansão imperial Otomana, curiosamente, esses velhos receios mantêm-se até ao presente, tendo-se transformado em preconceitos culturais, que agora se viram para a plena integração da Turquia, o país sucessor do Estado Otomano, na União Européia. Os episódios nacionalistas retiraram de sua formação multiétnica e multirreligiosa o seu lugar na evolução histórica. Até a pouco tempo o passado otomano foi fortemente ignorado e/ou entendido em termos negativos nos mais de trinta países que hoje ocupam territórios antes pertencentes ao Império.

Nos Estados árabes as crônicas históricas mantiveram um silêncio ou uma certa hostilidade de décadas em relação aos Otomanos. Nos seus esforços para criar um sentimento de comunidade árabe, os nacionalistas condenaram os Otomanos. Afirmavam que durante o período otomano, os direitos nacionais foram extintos. Assim os novos Estados emergentes ignoraram os Otomanos, recuando ao Califado Abássida (750-1258), ou por vezes aos faraós ou os reis da Babilônia a fim de identificarem as origens da História árabe, em detrimento do passado otomano. Há alguns sinais positivos de mudança na Síria, no Líbano, no Egito e também no Iraque, por exemplo. Tanto os eruditos destes países como acadêmicos estrangeiros interessados no estudo dessas regiões começam agora a analisar o período Otomano dos territórios árabes, integrando-o ao seu próprio passado, em vez de menosprezá-lo. Muitos deixaram de caracterizar este período de uma forma negativa, reconhecendo o seu espaço na história árabe. Como parte deste debate, há um progressivo consenso entre os estudiosos de que a maioria dos súditos árabes não consentiu e nem participou da dissolução do Império Otomano.

Imagem: Rumeli Hisari ou Fortaleza Europa (Istanbul, Turquia) construida em 1452, a pedido do Sultão Mehmet II para a conquista de Constantinopla
Fonte: Diogo Farias

Uma importante característica do Império Otomano foi a tolerância de seu sistema administrativo vigente na maior parte de sua existência. No mundo atual, cujas tecnologias de transporte e de comunicação, bem como a circulação de pessoas proporcionam um inigualável confronto com a diferença, o caso otomano justifica uma análise mais atenta. Durante séculos, o domínio otomano sobre os povos subjugados foi brando. O seu sistema político exigia aos administradores e oficiais do exército a proteção dos súditos no exercício da sua religião, fosse ela o Islã, o Judaísmo ou o Cristianismo, de qualquer vertente – sunita ou xiita, ortodoxa ou católica, armênia ou síria. Este requisito baseava-se no princípio islâmico da tolerância aos “Povos do Livro”, isto é, os judeus e cristãos. Eram os “povos” que haviam recebidos a revelação de Deus, ainda que de forma incompleta e imperfeita; o Estado islâmico otomano tinha a responsabilidade de os proteger na prática de suas crenças. É certo que os súditos judeus e cristãos foram ocasionalmente perseguidos e mortos pela sua fé. Contudo, essas foram violações do princípio de tolerância – um elevado valor que o Estado esperava e exigia que fosse respeitado. Esses princípios orientaram as relações intercomunitárias no Império Otomano ao longo dos séculos; porém, nos anos finais reinou a desarmonia. No entanto, durante quase toda a sua história o império mostrou ao mundo um modelo político eficaz de um sistema político multirreligioso.

Imagem: Taswir/Nakish (Miniatura Otomana), essas miniaturas, pinturas que remetem à tradição otomana, são vendidas em diversas lojas do centro histórico e Istanbul (Turquia)
Fonte: Diogo Farias

Ao fundar o seu novo Estado, na Anatólia, os nacionalistas turcos quiseram propiciar um sentimento comum de identidade turca através da ligação ao território da Anatólia pré-otomana. Transformaram os Hititas nos seus antepassados nacionais, procurando omitir o período otomano como sendo irrelevante para a identidade turca moderna (a dinastia Pahlavi encontrou, da mesma forma, a sua legitimação na Antiguidade – com os Aquemênidas, de Persépolis). Alegavam, ainda, que o Estado Otomano era corrupto, decadente e fraco, pelo que mereceu ser substituído pelo Estado-nação turco. No entanto, verifica-se também a existência de correntes antagônicas construídas ao longo de dezenas de anos. Já em 1940, em alguns artigos acadêmicos discutia-se o significado que o passado otomano tinha na Turquia atual. Em 1953, a República festejou com grandes comemorações o quinto centenário da conquista Otomana de Constantinopla, aclamando o sultão Mehmet II como herói nacional. Desde os anos 80, o repúdio do passado otomano tem vindo a dar lugar, de um modo geral, à sua aceitação, a despeito da considerável controvérsia em torno da natureza e significado desse mesmo passado. Na década de 90, o escritor turco Orhan Pamuk, utilizava (tal como outros) o passado otomano como cenário dos seus livros, o que demonstra a popularidade da temática otomana. Hoje existe um interesse bastante grande pelo passado otomano, tanto por parte do público como dos estudiosos: os monumentos da arquitetura otomana foram restaurados e artefatos otomanos são procurados pela classe média turca para a decoração das suas casas. Abundam igualmente programas televisivos sobre temas e contextos otomanos e o mesmo se passa no universo da animação.