domingo, 11 de julho de 2010

O Xiismo no Irã Safávida

O período Safávida (1501-1722/36) é por muitos historiadores considerado como o início da História Moderna do Irã, porque o Estado criado por esta dinastia marcou a gênesis do Estado-nação iraniano. Mas é discutível considerar o Irã Safávida como um Estado Moderno porque, em diversos aspectos, sua sociedade continuou os modelos e práticas mongóis e timúridas. Os Safávidas conscientemente construíram sua legitimação através do uso da História. Seus historiadores ligaram a genealogia da dinastia aos imãs xiitas e associaram o maior governante Safávida , Abbas I (1587-1629), ao grande conquistador da Ásia Central, Timur Lang (Tamerlão, 1336-1405) - no xiismo, o imam é a autoridade suprema e legítima da umma muçulmana. Os Safávidas fizeram muitas contribuições e de diversas formas seu legado sobreviveu até hoje. A dinastia unificou o Irã sob um único poder político, transformando uma sociedade tribal e nômade em uma sociedade sedentária, onde a maior parte de seus tributos advinham da agricultura e do comércio. Mais importante, introduziram o conceito de monarquia patrimonial aliada à uma autoridade territorial e uma legitimidade religiosa que, com modificações, sobreviveu até o século XX. Diversas instituições criadas no período Safávida ou adaptadas de épocas anteriores continuaram a existir no período Qajar (1796-1925). O período Safávida, finalmente, testemunhou o início de uma frequente interação diplomática e comercial com a Europa. Embora o Império Safávida fosse derrubado em 1722, o sucesso dos seus monarcas em estabelecer o Islã xiita como religião oficial do Estado foi de grande significado para a totalidade do Oriente Médio - shi'a: facção, em particular o partido de Ali ibn Abi Talib; shi'i (xia, xiita): seguidor da shi'a, comumente usado para xiitas duodécimos que aceitam a linhagem de 12 imãs, de Ali até Muhammad al-Mahdi.


Imagem: Mausoléu de Timur Lang, em Samarcanda (suas obras foram iniciadas em 1403)
Fonte: Joaquim Castilho.

No período Safávida, os turcos controlavam o poder político e militar, enquanto os iranianos (tajiks) dominavam a administração e a cultura. Sua política combinava: as tradições islâmicas de governo, onde o governante comandava a comunidade religiosa como um "representante" de Deus; a noção de realeza da Pérsia antiga e o seu ideal de monarca absolutista; e os princípios de legitimidade e poder da Ásia Central (turco-mongol), no qual o poder e a sua legitimidade residia no clã, e não apenas na figura do monarca. Neste sentido, o Irã Safávida tem muito em comum com seus vizinhos, o Império Otomano e a Índia Mogol. A ausência da primogenitura na tradição turco-mongol tornava cada sucessão uma longa disputa por poder, criando um clima de instabilidade (apesar de que no Irã Safávida, o princípio iraniano do filho mais velho suceder o pai geralmente prevalecia).


Imagem: Majed-e Ali (Isfahan), construída durante o governo do sultão seljúcida Sanjar (1118-1157), porém foi reconstruída durante o governo do Shah Abbas I.

Fonte:www.archnet.org


Os Safávidas surgiram perto do ano de 1300, como uma confraria religiosa, perto da cidade de Ardabil (no Noroeste do Irã) - esta é a cidade-natal do fundador da ordem, o Shaykh Safi al-Din (1252-1334). Dentro do clima de desordem política após o declínio do poder Mongol no Irã e a ascensão e queda de Timur Lang, a ordem Safávida (Safaviyya) continuou sob a liderança dos descendentes de Safi al-Din. Com Junayd (1447-60) e Haydar (1460-88) a ordem cresceu dentro de um território dominado por duas dinastias tribais conhecidas como Aq-Quyunlu (Carneiros Brancos) e Qara-Quyunlu (Carneiros Negros). O principal suporte da Irmandade eram grupos tribais conhecidos como Qizilbash, Cabeças Vermelhas, em referência aos turbantes vermelhos que dizia-se ter sido adotado na época de Haydar, seus doze tecidos simbolizavam a aliança do líder Safávida com os doze imãs xiitas. Apesar de se denominarem Qizilbash, esses guerreiros não possuíam uma descendência comum e mantinham sua lealdade ao seu clã, sendo que alguns clãns mantinham suas antigas rivalidades entre si. Os principais clãs Qizilbash, que suportavam a causa Safávida, migraram da Síria e da Anatólia para diferentes partes do Irã. Com a expansão do poder dos Safávidas, os líderes dos clãns eram apontados como governadores provinciais, como recompensa de seus serviços e lealdade..


Os Qizilbash formavam a cavalaria de elite e serviam como guarda pretoniana do xá, mas seu relacionamento com o governante também era místico: o discíplo, murid, e o mestre Sufi, murshid. Extremamente leais ao seu líder e convencidos de sua invencibilidade, muitos deles foram à guerra sem armaduras. Eram adeptos de rituais que envolviam bebidas alcoólicas e, supostamente, canibalismo (contra seus inimigos). Junayd viveu entre estes nômades, treinou artes militares com eles, e conduziu-os em razias contra os habitantes cristãos do Cáucaso.


Muitas questões sobre o início da ordem Safávida permanecem obscuras. Um ponto de incerteza é precisar a natureza de suas crenças religiosas. Originalmente, eram sunitas, mas no século XV, acabaram por se tornar xiitas sob a influência de alguns turcos. Originando um "Islã de fronteira": uma mistura de crenças islâmicas, pré-islâmicas e elementos milenaristas. Seu sistema de crenças era influenciado pelo xiismo duodécimo e por noções xamanísticas e animistas que incluíam a crença na reencarnação e na transmigração das almas, como também a ideia de um líder investido com atributos divinos.


Foi com o filho de Haydar, Isma'il, que os Safávidas passaram de um movimento messiânico para uma dinastia política liderada por um shah (título real: xá, imperador da Pérsia), ao invés de um shaykh (xeique: "velho", líder de uma tribo: pessoa com autoridade - religiosa -, sábio: mestre sufi). Sob o governo de Isma'il, uma genealogia foi criada, na qual Safi al-Din descendia do sétimo Imam, Musa al-Kazim. Esta atitude mostra pouca preocupação com a doutrina oficial e marcou a fusão entre o poder secular e a fé. Seu instrumento foi os Qizilbash, devotos leais, que recebiam terras e serviam como tutores dos príncipes Safávidas. Em 1499, Isma'il emergiu da região do Mar Cáspio (Gilão), onde viveu sob a proteção de um governante local e preparou-se para conquistar a região Ocidental do Irã do domínio dos Aq-Quyunlu. Em 1501, com 15 anos, Isma'il proclamou-se , em Tabriz. Declarou que o xiismo seria a fé oficial do reino, desta maneira estabeleceu o seu Estado com uma forte base ideológica, enquanto organizou uma série de campanhas, com o apoio dos Qizilbash, submetendo áreas como a Anatólia Oriental e o Iraque. Em 1510, todo o território que hoje forma o atual Irã, com excessão da região nordeste do Khurasan, estava sob o domínio Safávida. Quando Isma'il tomou o Khurasan, derrotando Muhammad Shibani Khan Uzbeg, o Estado Safávida atingiu o ápice de sua expansão.



Imagem: Batalha de Chaldiran
Fonte: www.wikipedia.com

Isma'il sonhava reinar sobre uma Irã unido, muçulmano e xiita, liberto dos árabes, turcos e mongóis. Os principais rivais dos Safávidas eram os Otomanos, defensores do Islã sunita , que sentiram-se ameaçados pelo estabelecimento de um Estado xiita, próximo ao seu Império. As provocações dos Safávidas e rebeliões pró-Safávidas na Anatólia, foram a causa da expedição militar do Sultão Selim contra o Irã, numa campanha que culminou com a famosa Batalha de Chaldiran, em 1514, quando o exército Otomano equipado com artilharia de campo e armas de fogo, derrotou as forças de Isma'il, que lutavam com arco e flecha.


Não obstante a derrota, Isma'il viria a fundar uma dinastia e a construir um Império no qual introduziu reformas religiosas radicais. A Irmandade Safávida baseava-se numa ordem sunita sufi e Isma'il foi o responsável pela proclamação do xiismo como religião oficial do Estado, um legado Safávida determinante para a História do Irã. A este propósito, os historiadores e islamólogos não tem certeza quanto a dois fatos: não sabem quando é que os líderes da Irmandade Safávida adotaram o xiismo, e ao fazerem esta opção, se ela foi realizada antes ou por Isma'il. Sabe-se que durante poucos anos da sua juventude, o xá foi protegido por um governante local xiita e pode ter adquirido suas convicções religiosas a partir desta experiência. Uma coisa parece certa, quaisquer que tenham sido as causas para a adoção do xiismo, Isma'il tornou-se um xiita dedicado e absolutamente determinado a coagir os habitantes dos territórios por ele controlados a adotar a fé xiita. O seu pragmatismo levou-o a dissolver as irmandades sunitas e a ordenar a execução de todos aqueles que se recusassem a aceitar o xiismo. Como não havia qualquer estabelecimento xiita no Irã, Isma'il viria a criá-lo “importando” vários mujtahidin (no xiismo, legistas religiosos qualificados a enunciar interpretações pessoais) oriundos dos territórios árabes, em particular do Líbano. A essas personalidades coube preencher a lacuna existente ao nível dos graus mais elevados da hierarquia religiosa e desbravar o caminho para a emergência de uma classe de mujtahidin. Apesar de todo este esforço, a versão do xiismo imanita promulgada por Isma'il conteve importantes desvios doutrinários. O xá reivindicava ser descendente do 7º Imã – Mouz al-Kazem – e ser divinamente inspirado por este Homem Santo, chegando ao ponto de ser ter declarado o representante terreno do Imã Oculto, atribuindo a si próprio poderes para proferir juízos infalíveis em questões de religiosidade e jurisprudência.


O longo convívio com Zaydi Shi'i Lahijan familiarizou Isma'il com o discurso xiita, por exemplo, a consciência ao se referir como “o perfeito, o Imã justo” (al-imam al-adil al-kamil) ou “o sultão justo” (al-sultan al-adil), pode aludir ao seu estatuto como sucessor secular de seu avô Uzun Hasan, e de acordo com a tradição duodécima, como sendo o 12º Imã. Alguns contos populares identificava Isma'il com Abu Muslim, o líder dos exércitos árabes baseado em Khurasan, que derrotou os Omíadas, em 765 - acreditavam que Abu Muslim estava escondido e voltaria para restaurar a ordem no mundo.

Imagem: Templo de Fatimah al'Masumah (Qom, Irã), construído durante o governo do Shah Abbas I. Fátimah era filha do sétimo Imã do xiismo duodécimo, Musa al-Khadim, e irmã do oitavo Imã, `Ali ar-Ridha.

Fonte: COSTA, Helder, Santos, Da Pérsia Safávida ao Irão Pahlavi (Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2005).


O discurso religioso pós-Chaldiran foi marcado por uma crescente identificação Safávida com o xiismo duodécimo, particularmente com seus ideais messiânicos. Na Masjed-e Ali, em Isfahan (1522), há inscrições citando o nome de Isma'il doze vezes, a mesma quantidade de imãs do xiismo duodécimo. O cronograma, “Ele chegou, aquele que abrirá as Portas”, claramente implicava o estatuto supramortal de Isma'il. Sua esposa, Khanum, também participou da identificação Safávida com o xiismo e, em 1522, doou fazendas, jardins e vilas de sua propriedade nas redondezas de Varamin, Qum e Qazvin à um templo de Fátima, a irmã do 8º Imã, em Qum, e encorajou a construção de outros edifícios religiosos. Ela financiou a restauração de uma ponte no Leste do Azerbaijão e promoveu o estatuto de seu marido como chefe da ordem sufi Safávida. Tajlu Khanum também financiou parte do mausoléu de Isma'il, em Ardabil. Assim como fez Khanum, seu marido também restaurou e construiu vários templos e outras construções neste período.


Imagem: Masjed-e Shah, hoje conhecida como Mesquita do Imã, foi construída em 1611.

Fonte: Joaquim Castilho.


O Shah Isma'il morreu em 1524 e foi sucedido pelo seu filho de dez anos, Tahmasb. Pela sua idade, o poder de fato foi exercido por um corpo de regentes Qizilbash. Apenas após 10 anos de guerra civil entre os Qizilbash, que Tahmasb consolidou seu poder. Tahmasb fez grandes esforços para consolidar o xiismo em seu reino, através de forte propaganda religiosa, cuja tarefa era difamar os sunitas, principalmente amaldiçoando os primeiros três califas, vistos como usurpadores do primeiro imã xiita, `Ali. Para disseminar o xiismo, fortalecer sua legitimação como líder xiita e construir um quadro religioso sem laços com nenhuma tribo ou etnia, o xá convidou estudiosos do mundo árabe/muçulmano, principalmente do Líbano, para migrarem para o Irã. Muitos aceitaram, atraídos pela oferta de terras, dinheiro e altas posições na burocracia.

Imagem: Masjed-e Sheikh Lotf-ollah (Isfahan). Esta mesquita foi construída durante o governo do Shah Abbas I, 1615-1618.
Fonte: COSTA, Helder, Santos, Da Pérsia Safávida ao Irão Pahlavi (Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2005).

Após a derrota de seu pai em Chaldiran, o reinado de Tahmasb viu crescer o papel do xá como representante do Imã Oculto. O xiismo duodécimo acredita em 12 Imãs, `Ali e seus descendentes, sendo que o último deles desapareceu, mas seus seguidores creem que o Imã Oculto retornará no futuro, na figura do messiânico Mahdi. Shah Isma'il representou um mundo primordial, semi-pagão, no qual rituais de orgia que envolviam muita bebida e práticas sexuais misturaram-se, de uma forma peculiar, ao apelo da legitimação islâmica de sua dinastia. Tahmasb inaugurou uma nova uma fase de grande ênfase em relação ao comportamento religioso. Era um grande devoto e, de acordo com alguns, um governante melancólico que raramente aparecia em público.


Imagem: Abbas I
Fonte: www.guardian.co.uk

Abbas I é considerado o maior governante Safávida, seu reinado marcou uma fase crucial para a evolução da dinastia Safávida, de uma formação tribal para um Estado (quasi-) burocrático. As crônicas mais antigas redigiam uma História universal, para legitimar as reivindicações turco-mongóis, mas as escritas a partir do reinado Abbas I, enfatizavam mais o caráter iraniano dos governantes Safávidas. O xá, quando jovem, reconhecia que os Qizilbash tinham qualidades guerreiras, mas olhava-os com desconfiança. Para erradicar sua influência no aparelho estatal, Abbas I reorganizou o exército concedendo-lhe uma estrutura permanente - algo novo no Irã. Desta maneira, iniciou-se o recrutamento dos ghulam, mercenários devotos do monarca, recutados em todas as tribos e das mais diversas nacionalidades. Muitos desses homens tinham sido feitos prisioneiros no decurso das guerras no Cáucaso e foram convertidos ao Islã. Outra medida, foi a redução do número de províncias (mamalik), que se encontravam sob a tutela dos qizilbash, e o aumento do número de províncias sob a administração direta do monarca (Khassas) - medida que aumentou significativamente as receitas do Estado, sendo aspecto importante para a caracterização do Estado safávida, como um Estado Moderno. Transferiu a capital de Kazwan para Isfahan. Depois ordenou a construção de uma cidade inteiramente nova ao lado da cidade antiga. Isfahan viria a ser uma metrópole própera, onde seriam acolhidos os políticos e os diplomatas do Ocidente, quando em visita à Corte de Abbas I. O soberano lançou uma série de ofensivas contra os Otomanos e Tabriz foi reconquistada. Por fim, em 1624, Bagdá foi conquistada.

Durante seu reinado, os Safávidas, auxiliados pelos navios da Companhia Inglesa das Índias Orientais, conseguiram expulsar os portugueses de Ormuz, em 1622. O Estado com foco na cultura iraniana refletiu-se em trabalhos religiosos compostos em língua persa, além da substituição do árabe pelo persa. Abbas I, o Grande, é conhecido como tendo sido um brilhante unificador, pacificador e administrador; além disso durante seu reinado foram construídos e reformados diversos edifícios religiosos para a reafirmação da dinastia como difusora da fé xiita. Ao apogeu atingido pelo reinado de Abbas I seguiu-se um período de nítida decadência, pois seus sucessores se mostraram incapazes de preservar todo o seu legado. Durante, o declínio da dinastia, observou-se perseguições a cristãos, judeus e filósofos muçulmanos não conformistas. Paralelamente, a influência dos mujahiddin aumentou e o clero xiita aproveitou para banir os sunitas residentes no país. A queda dos Safávidas também conduziu a um largo período de descentralização política.


É importante ressaltar o período Safávida como crucial para implementação do xiismo como religião oficial do Irã, além disso os ideais messiânicos e de martírio do xiismo influenciaram profundamente a sociedade iraniana. De acordo com a ideologia safávida o representante do Imam Oculto era o xá, porém com a queda da dinastia em 1722, o clero xiita começou assumir o direito de ser seu representante. No próximo post iremos tratar como ocorreu esta mudança e quais seus reflexos para o atual Irã.

Um comentário:

  1. gostei muito deste blog estou aprendendo muito com ele e cada vez que eu leio uma página deste blog eu quero ler muito mais pois isso é muito interessante bjs prof paula

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