terça-feira, 20 de julho de 2010

O veto à burqa e ao niqab na França - Parte II

Caros amigos e alunos, respeito todas as opniões e gostaria de aproveitar para agradecer pela participação de todos . É um privilégio poder discutir com vocês, aliás, é para isso que abrimos este espaço, para que possamos discutir livremente sobre qualquer assunto. Este blog é democrático e o que mais quero é promover esta discussão.

Irei primeiro responder às críticas e posteriormente reintroduzir a questão que considero central. Acho que alguns comentários, ao criticar os muçulmanos, acabam demonstrando a face intolerante da cultura “ocidental”. Sim, muitas vezes somos etnocentristas, interpretamos e julgamos a cultura alheia através dos valores e referências da nossa própria cultura - conjuguei o verbo na 1ª pessoa do plural, o que me inclui nesta definição. O etnocentrismo e o preconceito são amantes inconsequentes e ambos se enganam com a falta de informação. É triste perceber que de uma maneira geral, as pessoas não recebem informações claras sobre o Islã. Quando conto alguns casos que vivi, onde a comunicação e o respeito prevaleceram, quero que vocês interpretem e compreendam a situação - as religiões são diferentes, mas ambas pregam a paz. Meu objetivo não é ser um ativista pró-Islã, meu compromisso é com a liberdade e com o respeito.

Primeiramente, 6% da população francesa é muçulmana, ou seja, uma "pequena" minoria de quase 4 milhões de pessoas! Quando afirmei que muitos destes muçulmanos são imigrantes, não queria dizer que não há muçulmanos franceses. É lógico que há cidadãos franceses muçulmanos, como também há imigrantes naturalizados (ou seja, possuidores dos mesmos direitos dos demais franceses), imigrantes legalizados e ilegais. Muitos dos muçulmanos vivem em seu país (a França, diga-se de passagem) e tem todo o direito de reclamar por seus direitos e se sentirem ofendidos por esta lei, sendo eles maioria ou minoria da população. E mesmo que se todos os muçulmanos fossem imigrantes, ainda assim defenderia seus direitos, porque formam um grupo social extremamente importante para o bom funcionamento do Estado. São humanos, pessoas iguais à todas as outras e devem ser respeitados.


Aliás, é só andar por Paris e perceber que sua mesquita é linda, kebabs são facilmente encontrados, o Instituto do Mundo Árabe é magnífico e o Museu do Louvre possui uma bela coleção de arte islâmica. É extremamente perceptível a relevância e o refinamento da cultura árabe/muçulmana, seu legado para a humanidade é brilhante, e importante para nossa definição como "ocidentais", herdeiros dos valores greco-romanos. Muitas das obras de escritores gregos e romanos foram traduzidas, recuperadas e transmitidas por muçulmanos, como ocorreu no al-Andalus. Eu admiro muito a França, principalmente o apoio que seu Estado dá à cultura, a pesquisa e à difusão do conhecimento. Porém, não podemos permitir que essas conquistas sejam manchadas por opniões ou ações intolerantes.

Muitos defendem o direito de respeitar as leis, quando estamos num país estrangeiro. Concordo devemos respeitar sim, mas muitos muçulmanos franceses estão sendo ofendidos por um projeto de lei discriminatório dentro de seu próprio país. Mas vamos relembrar, a lei ainda não foi inteiramente aprovada, portanto ela deve ser abertamente discutida por todos e a opnião da comunidade internacional é extremamente importante. O Parlamento Europeu se opõe ao veto da burqa e do niqab, e demonstra que este é um projeto polêmico, que necessita ser debatido abertamente (acesse o link e leia a http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/parlamento+europeu+se+opoe+a+proibicao+da+burca/n1237677338952.html). No exterior é lógico que respeito as leis do país que estou visitando, mas sempre defenderei o direito da liberdade de expressão e de opnião, porque o debate é um dos pilares da democracia, e as leis não são imutáveis ou eternas. Vamos recordar... quantas Constituições o Brasil já teve? Se não estiver enganado são 8. Ou seja, destas oito, sete foram criticadas, revistas e substituídas; imaginem o número de leis que não passaram pelo mesmo processo. Discutir uma lei, de maneira respeitosa, é um exercício da democracia e, por outro lado, na qualidade de cidadão europeu, sinto-me ofendido pelo projeto francês - tenho dupla cidadania: brasileira e portuguesa.

Em relação à minha querida China, por mais que admiro sua cultura e guardo boas lembranças deste país, porém sou crítico da falta de liberdade de expressão imposta pelo PCC e de todos seus aspectos negativos. Sobre Cuba, discordo da situação dos seus presos políticos e da falta de instituições democráticas; na Arábia Saudita, critico o fato das mulheres não poderem andar sozinhas na rua; na Suiça, acho um absurdo as agências de seguro que cobram o dobro do preço de seus serviços aos clientes brasileiros. No Brasil, critico nossa desigualdade social, a política do governo Lula em relação ao Irã e como nossa mídia trata nossas mulheres como objetos. Na Inglaterra, ainda cobro explicações e as devidas punições às pessoas envolvidas com o assassinato de Jean Charles; e lógico, na França ou em qualquer outro país do mundo, criticarei medidas e leis anti-democráticas e preconceituosas. Eu não estou defendendo o Islã ou o cristianismo, mas sim a democracia e a liberdade de expressão; conceitos que são compátíveis às duas religiões. Condeno totalmente o preconceito, como já afirmei, passei por situações em que fui vítima deste crime e afirmo: sua ferida pode melhorar, mas a cicatriz estará lá para sempre.


Gostaria de deixar claro que o Islã não reprime ou obriga as mulheres a usarem a burqa ou o niqab. No Islã, apenas uma pequena minoria das mulheres usam a burqa ou o niqab, e a imagem de mulheres com a vestimenta integral não deve ser o esteriótipo da mulher muçulmana - há pouco tempo, este papel era ocupado pelas odalíscas. Esteriotipar e generalizar são atos equívocos, que não conseguem refletir a realidade.

No âmbito da questão de segurança, a lei também é extremamente preconceituosa. Primeiro, o terrorismo moderno já era uma tática usada pelos anarquistas europeus. Há terroristas na Europa, cujos integrantes não são muçulmanos, como por exemplo, o grupo separatista basco, o ETA, que age principalmente na Espanha, mas parte do país basco está em território francês. Segundo, peço que enviem um link que mostre uma notícia de um atentado, dentro da Europa Ocidental (e mais precisamente na França), onde o terrorista estava vestido de burqa ou niqab? Que eu saiba, isso só ocorreu em países muçulmanos, se já ocorreu algum na Europa Ocidental trata-se de um caso isolado. Como terroristas muçulmanos ou os terroristas ocidentais europeus agem? De forma discreta, é claro, porque para os olhos da população preconceituosa “ocidental”, o usuário da vestimenta integral será sempre um suspeito, até que provem o contrário – alguns comentários me levaram a esta conclusão. Agora, façam uma busca no “Google” dos terroristas do ETA e do IRA, são pessoas aparentemente normais, uma vez eu vi uma foto de um procurado no aeroporto de Barajas (Madri, Espanha), era uma senhora de rosto nada ameaçador, porém tratava-se de uma perigosa terrorista. Os terroristas muçulmanos dos atentados de 11/09, do metro de Madri e de Londres estavam vestidos com trajes discretos. Porque de fato, antes que seu objetivo seja cumprido, o correto é não chamar atenção - este é o procedimento padrão, não uma regra infalível .

Criar uma lei como essa, além de uma confissão de intolerância, é marcar um ponto a favor para o terrorismo. É dificultar a convivência e gerar um clima cada vez mais instável. Eu não estou eliminando a hipótese de que um terrorista não pode atacar vestido de burqa ou niqab, mas a grande maioria faz o contrário. Devemos proibir os cidadãos de usar bonés e óculos escuros ao mesmo tempo? Este conjunto não dificultaria a identificação de possíveis terroristas? O que impede um terrorista de se vestir de freira ou de padre, e embaixo de sua confortável batina carregar poderosos explosivos sem que nínguem perceba? Garanto-lhes que é um disfarce melhor do que a burqa e o niqab. Aliás, alguns terroristas cometeram atentados em Israel disfarçados de judeus ortodoxos, para vitimar judeus ortodoxos. Acreditar que proibir o uso da burqa e do niqab será uma medida eficaz contra o terrorismo é totalmente errôneo. O tema que deve ser discutido aqui é a eficácia deste projeto de lei, o costume e as tradições de cada povo é um tema relevante, porém secundário.

Ao invés de aprovar uma lei que gera um visível mal estar, porque não criar medidas que não ferem a crença de ninguém, baseadas no respeito ao ser humano em primeiro lugar. Basta vontade política, incluir os prejudicados na discussão e encontrar uma “terceira via” que agrade à gregos e troianos. Concordo que em alguns lugares as pessoas devam se identificar, mas há de se encontrar um meio em que o processo de identificação seja feito de forma politicamente correta. Proibir uma vestimenta me parece agressivo e inadequado, creio que uma discussão franca e aberta será a melhor forma de encontrar uma saída, por favor não vamos entregar a vitória para o preconceito.

Esta lei demonstra claramente que alguns olhos “ocidentais” preconceituosos não querem ver e nem conviver com o Islã. É uma incoerência defender a democracia, a modernidade e a igualdade e ao mesmo tempo concordar com a intolerância e a opressão. Desculpe-me, mas não podemos julgar as pessoas previamente e muitos estão cometendo este erro gravíssimo.

Meu caro Raphael, este assunto também instigou meu paladar. Mas vamos continuar a discussão enquanto esta promissora oportunidade não chega.

Quanto à mutilação do clítoris, acho que este é um assunto interessantíssimo para uma discussão à parte, porque o problema em relação à vestimenta integral muçulmana não está somente inserida num contexto religioso, cultural e social; mas possue um peso político extremamente relevante, principalmente no mundo pós-11/09. Sei que o amigo Raphael respeita outras culturas e por isso considero sua opnião. O problema é a natureza e o caráter deste projeto de lei, que tanto me causa angústia. Porque julgar os muçulmanos como uma possível ameaça (aí está o elemento preconceituoso) e não se preocupar com a situação da mulher: se os seus direitos são respeitados, se ela é oprimida pela sua família, ou se precisa de apoio do Estado – por isso defino que as muçulmanas francesas ou imigrantes são tratadas como “cidadãs de segunda classe”, dentro de uma sociedade que teoricamente teria que prezar pela a igualdade e pela liberdade.

2 comentários:

  1. Sabe meu caro, tenho que admitir que sou um perfeito ignorante perante o islamismo. E seus dois post´s são, praticamente, uma aula para mim. Em princípio, estamos discutindo a religião deles, mas eu discutiria o catolicismo até com prazer maior. Como ateu, vou criticar qualquer religião, sem preconceitos! Conheço mais sobre umas do que sobre outras, e me sinto desconfortável para questioná-lo.

    Talvez lei como essa (que acabou de ser rejeitada na Espanha) seja preconceituosa na medida que atinge uma unica religião. Não me ative ao argumento da segurançca pois não creio nele.

    É fato que o Islã cresce a ordens desmedidas nos EUA, e me pergunto se seria pelo mesmo motivo que o cristianismo cresce no Brasil: a falência moral da Igreja Católica?

    Dessa bela discussão toda, digo com orgulho que saio menos preconceituoso.

    (Em tempo: tenho notícias da semana passada no sentido de que ainda não se pode andar junto nem beijar em público em Abu Dahbi!- Mas espero que a sua informação seja a mais correta!)

    Respeito é o que falta no mundo (terreno e extraterreno)

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  2. Rapha,

    Fico feliz em ter contribuido de alguma forma. Em relação ao crescimento do Islã nos EUA, creio que seu argumento esteja certo, mas acrescento uma causa social e "racial" para seu crescimento: pois o Islã cresce muito em comunidades pobres e também entre afro-descendentes - isso não quer dizer que não cresça entre outros setores sociais.
    Em relação ao beijo em público, eu dei exemplos de liberdade, mas claro que há lugares onde não se deve fazer isso. Às vezes, até dentro da mesma cidade você encontrará opniões e reações diferentes. Também é necessário definir o tipo do beijo, porque até aqui, no país do Carnaval, um determinado tipo de conduta poderá gerar uma reação negativa.
    Porém, um ponto é determinante, os países "ocidentais" passaram por uma revolução sexual, que liberalizou algumas práticas e contribuiu para que a questão sexual seja cada vez mais discutida. Mas vale lembrar, que historicamente a revolução sexual ainda é muito recente e ainda estamos colhendo os seus frutos. Por ser recente, devemos levar esta situação em consideração, quando formos discutir sociedades que ainda não tiveram esta experiência.
    O mundo muçulmano e diversos outros países ainda não fizeram sua revolução sexual. Isso gera um delicioso tema para um debate: será que o mundo muçulmano precisa passar por uma revolução sexual? Se a resposta for positiva, como deveria ocorrer esta revolução? Seria interessante discutir o caso da Turquia e outros países que possuem uma conduta mais liberal em relação a estas questões.

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