terça-feira, 20 de julho de 2010

O veto à burqa e ao niqab na França - Parte II

Caros amigos e alunos, respeito todas as opniões e gostaria de aproveitar para agradecer pela participação de todos . É um privilégio poder discutir com vocês, aliás, é para isso que abrimos este espaço, para que possamos discutir livremente sobre qualquer assunto. Este blog é democrático e o que mais quero é promover esta discussão.

Irei primeiro responder às críticas e posteriormente reintroduzir a questão que considero central. Acho que alguns comentários, ao criticar os muçulmanos, acabam demonstrando a face intolerante da cultura “ocidental”. Sim, muitas vezes somos etnocentristas, interpretamos e julgamos a cultura alheia através dos valores e referências da nossa própria cultura - conjuguei o verbo na 1ª pessoa do plural, o que me inclui nesta definição. O etnocentrismo e o preconceito são amantes inconsequentes e ambos se enganam com a falta de informação. É triste perceber que de uma maneira geral, as pessoas não recebem informações claras sobre o Islã. Quando conto alguns casos que vivi, onde a comunicação e o respeito prevaleceram, quero que vocês interpretem e compreendam a situação - as religiões são diferentes, mas ambas pregam a paz. Meu objetivo não é ser um ativista pró-Islã, meu compromisso é com a liberdade e com o respeito.

Primeiramente, 6% da população francesa é muçulmana, ou seja, uma "pequena" minoria de quase 4 milhões de pessoas! Quando afirmei que muitos destes muçulmanos são imigrantes, não queria dizer que não há muçulmanos franceses. É lógico que há cidadãos franceses muçulmanos, como também há imigrantes naturalizados (ou seja, possuidores dos mesmos direitos dos demais franceses), imigrantes legalizados e ilegais. Muitos dos muçulmanos vivem em seu país (a França, diga-se de passagem) e tem todo o direito de reclamar por seus direitos e se sentirem ofendidos por esta lei, sendo eles maioria ou minoria da população. E mesmo que se todos os muçulmanos fossem imigrantes, ainda assim defenderia seus direitos, porque formam um grupo social extremamente importante para o bom funcionamento do Estado. São humanos, pessoas iguais à todas as outras e devem ser respeitados.


Aliás, é só andar por Paris e perceber que sua mesquita é linda, kebabs são facilmente encontrados, o Instituto do Mundo Árabe é magnífico e o Museu do Louvre possui uma bela coleção de arte islâmica. É extremamente perceptível a relevância e o refinamento da cultura árabe/muçulmana, seu legado para a humanidade é brilhante, e importante para nossa definição como "ocidentais", herdeiros dos valores greco-romanos. Muitas das obras de escritores gregos e romanos foram traduzidas, recuperadas e transmitidas por muçulmanos, como ocorreu no al-Andalus. Eu admiro muito a França, principalmente o apoio que seu Estado dá à cultura, a pesquisa e à difusão do conhecimento. Porém, não podemos permitir que essas conquistas sejam manchadas por opniões ou ações intolerantes.

Muitos defendem o direito de respeitar as leis, quando estamos num país estrangeiro. Concordo devemos respeitar sim, mas muitos muçulmanos franceses estão sendo ofendidos por um projeto de lei discriminatório dentro de seu próprio país. Mas vamos relembrar, a lei ainda não foi inteiramente aprovada, portanto ela deve ser abertamente discutida por todos e a opnião da comunidade internacional é extremamente importante. O Parlamento Europeu se opõe ao veto da burqa e do niqab, e demonstra que este é um projeto polêmico, que necessita ser debatido abertamente (acesse o link e leia a http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/parlamento+europeu+se+opoe+a+proibicao+da+burca/n1237677338952.html). No exterior é lógico que respeito as leis do país que estou visitando, mas sempre defenderei o direito da liberdade de expressão e de opnião, porque o debate é um dos pilares da democracia, e as leis não são imutáveis ou eternas. Vamos recordar... quantas Constituições o Brasil já teve? Se não estiver enganado são 8. Ou seja, destas oito, sete foram criticadas, revistas e substituídas; imaginem o número de leis que não passaram pelo mesmo processo. Discutir uma lei, de maneira respeitosa, é um exercício da democracia e, por outro lado, na qualidade de cidadão europeu, sinto-me ofendido pelo projeto francês - tenho dupla cidadania: brasileira e portuguesa.

Em relação à minha querida China, por mais que admiro sua cultura e guardo boas lembranças deste país, porém sou crítico da falta de liberdade de expressão imposta pelo PCC e de todos seus aspectos negativos. Sobre Cuba, discordo da situação dos seus presos políticos e da falta de instituições democráticas; na Arábia Saudita, critico o fato das mulheres não poderem andar sozinhas na rua; na Suiça, acho um absurdo as agências de seguro que cobram o dobro do preço de seus serviços aos clientes brasileiros. No Brasil, critico nossa desigualdade social, a política do governo Lula em relação ao Irã e como nossa mídia trata nossas mulheres como objetos. Na Inglaterra, ainda cobro explicações e as devidas punições às pessoas envolvidas com o assassinato de Jean Charles; e lógico, na França ou em qualquer outro país do mundo, criticarei medidas e leis anti-democráticas e preconceituosas. Eu não estou defendendo o Islã ou o cristianismo, mas sim a democracia e a liberdade de expressão; conceitos que são compátíveis às duas religiões. Condeno totalmente o preconceito, como já afirmei, passei por situações em que fui vítima deste crime e afirmo: sua ferida pode melhorar, mas a cicatriz estará lá para sempre.


Gostaria de deixar claro que o Islã não reprime ou obriga as mulheres a usarem a burqa ou o niqab. No Islã, apenas uma pequena minoria das mulheres usam a burqa ou o niqab, e a imagem de mulheres com a vestimenta integral não deve ser o esteriótipo da mulher muçulmana - há pouco tempo, este papel era ocupado pelas odalíscas. Esteriotipar e generalizar são atos equívocos, que não conseguem refletir a realidade.

No âmbito da questão de segurança, a lei também é extremamente preconceituosa. Primeiro, o terrorismo moderno já era uma tática usada pelos anarquistas europeus. Há terroristas na Europa, cujos integrantes não são muçulmanos, como por exemplo, o grupo separatista basco, o ETA, que age principalmente na Espanha, mas parte do país basco está em território francês. Segundo, peço que enviem um link que mostre uma notícia de um atentado, dentro da Europa Ocidental (e mais precisamente na França), onde o terrorista estava vestido de burqa ou niqab? Que eu saiba, isso só ocorreu em países muçulmanos, se já ocorreu algum na Europa Ocidental trata-se de um caso isolado. Como terroristas muçulmanos ou os terroristas ocidentais europeus agem? De forma discreta, é claro, porque para os olhos da população preconceituosa “ocidental”, o usuário da vestimenta integral será sempre um suspeito, até que provem o contrário – alguns comentários me levaram a esta conclusão. Agora, façam uma busca no “Google” dos terroristas do ETA e do IRA, são pessoas aparentemente normais, uma vez eu vi uma foto de um procurado no aeroporto de Barajas (Madri, Espanha), era uma senhora de rosto nada ameaçador, porém tratava-se de uma perigosa terrorista. Os terroristas muçulmanos dos atentados de 11/09, do metro de Madri e de Londres estavam vestidos com trajes discretos. Porque de fato, antes que seu objetivo seja cumprido, o correto é não chamar atenção - este é o procedimento padrão, não uma regra infalível .

Criar uma lei como essa, além de uma confissão de intolerância, é marcar um ponto a favor para o terrorismo. É dificultar a convivência e gerar um clima cada vez mais instável. Eu não estou eliminando a hipótese de que um terrorista não pode atacar vestido de burqa ou niqab, mas a grande maioria faz o contrário. Devemos proibir os cidadãos de usar bonés e óculos escuros ao mesmo tempo? Este conjunto não dificultaria a identificação de possíveis terroristas? O que impede um terrorista de se vestir de freira ou de padre, e embaixo de sua confortável batina carregar poderosos explosivos sem que nínguem perceba? Garanto-lhes que é um disfarce melhor do que a burqa e o niqab. Aliás, alguns terroristas cometeram atentados em Israel disfarçados de judeus ortodoxos, para vitimar judeus ortodoxos. Acreditar que proibir o uso da burqa e do niqab será uma medida eficaz contra o terrorismo é totalmente errôneo. O tema que deve ser discutido aqui é a eficácia deste projeto de lei, o costume e as tradições de cada povo é um tema relevante, porém secundário.

Ao invés de aprovar uma lei que gera um visível mal estar, porque não criar medidas que não ferem a crença de ninguém, baseadas no respeito ao ser humano em primeiro lugar. Basta vontade política, incluir os prejudicados na discussão e encontrar uma “terceira via” que agrade à gregos e troianos. Concordo que em alguns lugares as pessoas devam se identificar, mas há de se encontrar um meio em que o processo de identificação seja feito de forma politicamente correta. Proibir uma vestimenta me parece agressivo e inadequado, creio que uma discussão franca e aberta será a melhor forma de encontrar uma saída, por favor não vamos entregar a vitória para o preconceito.

Esta lei demonstra claramente que alguns olhos “ocidentais” preconceituosos não querem ver e nem conviver com o Islã. É uma incoerência defender a democracia, a modernidade e a igualdade e ao mesmo tempo concordar com a intolerância e a opressão. Desculpe-me, mas não podemos julgar as pessoas previamente e muitos estão cometendo este erro gravíssimo.

Meu caro Raphael, este assunto também instigou meu paladar. Mas vamos continuar a discussão enquanto esta promissora oportunidade não chega.

Quanto à mutilação do clítoris, acho que este é um assunto interessantíssimo para uma discussão à parte, porque o problema em relação à vestimenta integral muçulmana não está somente inserida num contexto religioso, cultural e social; mas possue um peso político extremamente relevante, principalmente no mundo pós-11/09. Sei que o amigo Raphael respeita outras culturas e por isso considero sua opnião. O problema é a natureza e o caráter deste projeto de lei, que tanto me causa angústia. Porque julgar os muçulmanos como uma possível ameaça (aí está o elemento preconceituoso) e não se preocupar com a situação da mulher: se os seus direitos são respeitados, se ela é oprimida pela sua família, ou se precisa de apoio do Estado – por isso defino que as muçulmanas francesas ou imigrantes são tratadas como “cidadãs de segunda classe”, dentro de uma sociedade que teoricamente teria que prezar pela a igualdade e pela liberdade.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O veto à burqa e ao niqab na França

Fonte: www.janzwart.nl

A Câmara Baixa francesa aprovou no dia 12 de Julho de 2010, com 335 votos a favor e apenas um contra, o projeto de lei que proíbe o uso do véu integral islâmico - como a burqa (que cobre todo o corpo) ou o niqab (que deixa apenas os olhos a mostra) - em locais públicos. O projeto segue para o voto no Senado, em Setembro. Segundo pesquisas divulgadas, a medida conta com o apoio da população francesa, porém poderá atrair críticas do mundo muçulmano.

A medida poderá entrar em vigor já no primeiro semestre de 2011, segundo seu projeto, a multa para as mulheres que usarem a burqa ou o niqab será de até 150 euros (vale lembrar que haverá um período de vacatio legis de seis meses). Quem pressionar uma mulher a sair com estas vestimentas em espaços públicos pode pegar penas que chegam a um ano de prisão e multas de até 150 mil euros. A direita governista alega que o uso da vestimenta integral fere a liberdade e a dignidade da mulher e é ainda um risco à segurança, já que não permite sua identificação.

Na opnião deste blogueiro, esta medida fere a liberdade dos cidadãos, além de ser claramente islamofóbica. O uso do véu é visto pela mulher muçulmana como uma demonstração de respeito à Deus. No mundo muçulmano o uso do véu não é obrigatório, já abordamos anteriormente a diversidade dentro do Islã, sabemos que há sociedades mais "abertas" (como a Turquia e o Líbano) e sociedades mais "fechadas" (como o Iêmen e a Arábia Saudita). Caracterizar o mundo muçulmano como "feudal", atrasado e intolerante, é o mesmo que utilizar os amish, ou apenas os cristãos texanos adeptos do Partido Republicano, como esteriótipo dos cidadãos dos EUA, ignorando todos os outros grupos sociais do país. Dentro do mundo muçulmano há diferentes tipos de mulheres, desde a mulher moderna e independente que não usa o véu, até a sua antítese, aquela que é usuária da burqa.

Uma sociedade moderna deve prezar pela liberdade e bem-estar de seus cidadãos, e dentro deste conceito garantir a liberdade de expressão de cada um. Ao mesmo tempo que essa parcela xenófoba da população francesa se sente ameaçada pela burqa, estes parecem estáticos em relação às mulheres seminuas que aparecem em anúncios, divulgando os produtos nacionais franceses (não quero generalizar, conheço muitos franceses e os admiro, pois são abertos e em geral bastante cultos). É lógico que não defendemos que alguns homens obriguem suas mulheres a usar a burqa ou o niqab, porém algumas mulheres utilizam a vestimenta integral por vontade própria. Neste sentido, entendemos que obrigar uma mulher a utilizar a burqa ou o niqab pode ser uma forma de opressão, mas na medida em que seu uso seja uma opção de vida de uma mulher, ela deve ter todo o direito de se vestir como bem entender.

Calcula-se que menos de 2000 mulheres usam a burqa ou o niqab na França, ou seja, esta medida afeta uma fração mínima da população do país (que gira em torno de 64 milhões). Será que um Estado organizado, como o francês, não está apto a analizar cada caso, já que são proporcionalmente poucos, e definir quais destes são situações onde ocorre opressão ou uma opção de conduta? Será que é necessário criar um desconforto em relação a população muçulmana francesa? Será que a melhor maneira de erradicar a opressão e a intolerância é agir através de medidas opressivas e intolerantes?

Quando morei em Lisboa, frequentei a Mesquita de Lisboa, apesar de não ser muçulmano (aliás não sigo nehuma religião). Como estudante do curso de mestrado, queria compreender melhor o Islã, uma religião que prega a paz e o amor à Deus e não a guerra e a intolerância. Na mesquita, participei de um curso direcionado às mulheres muçulmanas, no começo fiquei um pouco tímido, por que de fato não conhecia na prática esta religião, e tinha receio de ser mal interpretado. Estava enganado, fui muito bem recebido, além de ser aceito para participar do curso ao lado de todas as mulheres - tudo bem, eu no fundo da classe e as mulheres à frente. Em nenhum momento foi transmitido ideais de intolerância e opressão, aliás, exceto dentro da mesquita, onde o uso do véu é obrigatório, nínguem afirmou que as mulheres deveriam utilizá-los fora dela.

No nosso Brasil, cuja maioria da população é cristã (ou até mesmo na "laica" França), ocorrem casos de violência doméstica que assustam qualquer cristão ou muçulmano; creio que esses casos de opressão não ocorrem por causa da religião dos agressores, mas sim pela sua falta de fé (equilíbrio, bom-senso, humanidade ou de melhores condições sociais). Um Estado progressista e moderno deve garantir o cumprimento dos direitos das mulheres e de todos os seus cidadãos, e não estimular um clima de intolerância religiosa e social, porque muitos dos muçulmanos da França são de origem estrangeira, principalmente provenientes do Norte da África. É muito leviano aprovar leis islamofóbicas camufladas num discurso pseudofeminista, ao invés de dar assistência à uma comunidade representada maioritariamente por imigrantes e seus descendentes - o governo francês deixa claro que esta é uma medida para resolver um problema "indesejado", causado por "cidadãos de segunda classe".


Hoje, dia 14 de Julho de 2010, é necessário ressaltar os ideais revolucionários de "liberdade, igualdade e fraternidade", que deverão sempre prevalecer na sociedade francesa (independente de suas interpretações históricas). É nesta França que quero acreditar, dos franceses que tive o prazer de conhecer, que respeitam as pessoas em seu país ou fora dele; a França de jovens abertos, que aprenderam a conviver, entender e respeitar a diversidade.


Imagem: diferentes vestimentas da mulher muçulmana. Vale lembrar que não usar um véu também é uma opção da mulher.
Fonte: www.muslimthai.com

O Xiismo no Irã Pós-Safávida

Um dos principais obstáculos das forças políticas centralizadoras no Irã pós-Safávida foi a posição de destaque dos religiosos xiitas, fato que teve reflexos na própria sociedade iraniana. Os xás Safávidas foram aceitos como representantes do Imã Oculto, sua autoridade religiosa conferia-lhes a legitimidade do poder temporal. Porém, após a queda dos Safávidas e a ascensão da dinastia Qajar, seus xás não assumiram a posição de representantes do Imã Oculto. Aqueles que se destacassem por sua piedade e conhecimento, seriam elevados ao estatuto de mujtahidin (no xiismo, legistas religiosos qualificados a enunciar interpretações pessoais), desta forma poderiam emitir juízos em matéria de direito e de prática religiosa; seriam os mais qualificados para exercer a ijtihad. Os mujtahidin argumentavam que a partir do momento em que os xás qajars se assumiram como governantes temporais, sua classe teria o direito exclusivo de prover interpretações em matérias da jurisprudência e das práticas religiosas. Os mujtahidin assumiram o estatuto de intérpretes legítimos da vontade do Imã Oculto, o qual concedia o direito ao exercício da ijtihad. A quantidade de mujtahiddin aumentou na primeira metade do século XIX, quando foram postos em prática dois conceitos: o primeiro era a ideia de que todos os crentes xiitas deviam ser vinculados a um mujtahiddin e aceitar suas diretivas; o segundo, baseou-se no fato de pareceres dos mujtahiddin vivos suplantarem todos os pareceres preexistentes. A aceitação destes postulados produziu a necessidade de aumentar o número dos mujtahiddin. Com a sua proliferação, alguns mujtahiddin detentores de uma maior capacidade de aprendizagem e de compreensão passaram a ser intitulados Marjad al-Taqlid (fonte de emulação) tornando-se as figuras proeminentes do clero xiita, que posteriormente adotariam o título de Ayatollah, o “olho de Deus”.

Além disso muitos mujtahiddin gozavam de autonomia econômica em relação ao xá. Funcionavam não apenas como juízes em litígios civis (casos criminais cabiam ao xá), mas também como cobradores de impostos, administradores de funções religiosas, mantenedores de mesquitas e escolas, distribuidores de esmolas etc.

Com a queda da dinastia Safávida e a subida ao poder dos novos governantes que não possuíam atributos divinos, a anterior associação estreita entte o clero xiita e o Estado extinguiu-se; daí que apoiados pelo povo, os mujtahiddin tornaram-se uma força poderosa de oposição às políticas dos futuros monarcas. A crescente da influência e poder dos mujtahiddin na sociedade iraniana evoluirá durante o século XX, culminando em seu papel preponderante na Revolução Islâmica de 1978 e na formação e condução da política, da jurisprudência e dos assuntos religiosos da República Islâmica do Irã.

Pérsia ou Irã?

Desde o século V a.C., os gregos utilizavam o termo Persis para definir a Pérsia/Irã (inicialmente utilizaram o termo Medes, "a terra dos medos" - povo que dominou o Irã antes da Dinastia Aquemênida). Persis (do grego) veio de Pars (do persa), nome da região de origem dos antigos governantes Aquemênidas. Este termo foi retirado da língua persa antiga, na qual Pārsa é o nome do povo que Ciro, o Grande, governou antes de conquistar outros reinos iranianos. Esta tribo acabou por nomear a região onde viviam (que hoje é a província de Fars/Pars, apesar de que na antiguidade a região abrangia um território maior do que a atual província). O nome latino para definir a região era Persia.

O nome Pérsia foi utilizado no exterior até 1935, no entanto, o termo Aryanam tem origem proto-iraniana (língua que deu origem ao persa), podendo ser anterior ao ano 1000 a.C. Não há certeza em relação ao termo utilizado pelos povos iraianos para definir sua terra durante as dinastias: Meda (728-559 a.C.), Aquemênida (550-331/330 a.C.) e Parta (250-226 a.C.). Mas há evidências de que no período Sassânida (226-561) já era utilizado o termo Eran (posteriormente: Iran), que significa "terra dos Aryans" (Arianos). A partir daí, o termo Irã passou a ser utilizado por todas as dinastias iranianas posteriores, entretanto o termo Pérsia continuou sendo amplamente usado na Europa.

Em 1935, Reza Shah fez uma petição para que todos os países ocidentais utilizassem o nome Irã em suas línguas também, porém este nome causou confusão, durante a Segunda Guerra Mundial ,por causa de semelhança com o vizinho Iraque (Iraq). Em 1959, Muhammad Reza Shah, anunciou que tanto Pérsia quanto Irã poderiam ser utilizados. Este blog utilizou "Irã Safávida" em detrimento a "Pérsia Safávida", porque o primeiro aproxima-se do termo utilizado pelos iranianos, aliás os próprios Safávidas chamavam seu país de Iran; enquanto o segundo é de origem europeia. Vale ressaltar que muitos estudiosos europeus já utilizam o termo Irã (Iran) para tratar de períodos históricos anteriores à 1935, o que pode ser conferido, por exemplo, nas obras: The Cambridge History of Iran, da conceituada Cambridge University, organizada por diversos autores; Safavid Iran: the rebirth of a Persian Empire, de Andrew J. Newman; Iran under Safavids, de Roger Savory; The Persuit of Pleasure: drugs and stimulants in Iranian history, 1500-1900, Rudolph P. Matthee.

domingo, 11 de julho de 2010

O Xiismo no Irã Safávida

O período Safávida (1501-1722/36) é por muitos historiadores considerado como o início da História Moderna do Irã, porque o Estado criado por esta dinastia marcou a gênesis do Estado-nação iraniano. Mas é discutível considerar o Irã Safávida como um Estado Moderno porque, em diversos aspectos, sua sociedade continuou os modelos e práticas mongóis e timúridas. Os Safávidas conscientemente construíram sua legitimação através do uso da História. Seus historiadores ligaram a genealogia da dinastia aos imãs xiitas e associaram o maior governante Safávida , Abbas I (1587-1629), ao grande conquistador da Ásia Central, Timur Lang (Tamerlão, 1336-1405) - no xiismo, o imam é a autoridade suprema e legítima da umma muçulmana. Os Safávidas fizeram muitas contribuições e de diversas formas seu legado sobreviveu até hoje. A dinastia unificou o Irã sob um único poder político, transformando uma sociedade tribal e nômade em uma sociedade sedentária, onde a maior parte de seus tributos advinham da agricultura e do comércio. Mais importante, introduziram o conceito de monarquia patrimonial aliada à uma autoridade territorial e uma legitimidade religiosa que, com modificações, sobreviveu até o século XX. Diversas instituições criadas no período Safávida ou adaptadas de épocas anteriores continuaram a existir no período Qajar (1796-1925). O período Safávida, finalmente, testemunhou o início de uma frequente interação diplomática e comercial com a Europa. Embora o Império Safávida fosse derrubado em 1722, o sucesso dos seus monarcas em estabelecer o Islã xiita como religião oficial do Estado foi de grande significado para a totalidade do Oriente Médio - shi'a: facção, em particular o partido de Ali ibn Abi Talib; shi'i (xia, xiita): seguidor da shi'a, comumente usado para xiitas duodécimos que aceitam a linhagem de 12 imãs, de Ali até Muhammad al-Mahdi.


Imagem: Mausoléu de Timur Lang, em Samarcanda (suas obras foram iniciadas em 1403)
Fonte: Joaquim Castilho.

No período Safávida, os turcos controlavam o poder político e militar, enquanto os iranianos (tajiks) dominavam a administração e a cultura. Sua política combinava: as tradições islâmicas de governo, onde o governante comandava a comunidade religiosa como um "representante" de Deus; a noção de realeza da Pérsia antiga e o seu ideal de monarca absolutista; e os princípios de legitimidade e poder da Ásia Central (turco-mongol), no qual o poder e a sua legitimidade residia no clã, e não apenas na figura do monarca. Neste sentido, o Irã Safávida tem muito em comum com seus vizinhos, o Império Otomano e a Índia Mogol. A ausência da primogenitura na tradição turco-mongol tornava cada sucessão uma longa disputa por poder, criando um clima de instabilidade (apesar de que no Irã Safávida, o princípio iraniano do filho mais velho suceder o pai geralmente prevalecia).


Imagem: Majed-e Ali (Isfahan), construída durante o governo do sultão seljúcida Sanjar (1118-1157), porém foi reconstruída durante o governo do Shah Abbas I.

Fonte:www.archnet.org


Os Safávidas surgiram perto do ano de 1300, como uma confraria religiosa, perto da cidade de Ardabil (no Noroeste do Irã) - esta é a cidade-natal do fundador da ordem, o Shaykh Safi al-Din (1252-1334). Dentro do clima de desordem política após o declínio do poder Mongol no Irã e a ascensão e queda de Timur Lang, a ordem Safávida (Safaviyya) continuou sob a liderança dos descendentes de Safi al-Din. Com Junayd (1447-60) e Haydar (1460-88) a ordem cresceu dentro de um território dominado por duas dinastias tribais conhecidas como Aq-Quyunlu (Carneiros Brancos) e Qara-Quyunlu (Carneiros Negros). O principal suporte da Irmandade eram grupos tribais conhecidos como Qizilbash, Cabeças Vermelhas, em referência aos turbantes vermelhos que dizia-se ter sido adotado na época de Haydar, seus doze tecidos simbolizavam a aliança do líder Safávida com os doze imãs xiitas. Apesar de se denominarem Qizilbash, esses guerreiros não possuíam uma descendência comum e mantinham sua lealdade ao seu clã, sendo que alguns clãns mantinham suas antigas rivalidades entre si. Os principais clãs Qizilbash, que suportavam a causa Safávida, migraram da Síria e da Anatólia para diferentes partes do Irã. Com a expansão do poder dos Safávidas, os líderes dos clãns eram apontados como governadores provinciais, como recompensa de seus serviços e lealdade..


Os Qizilbash formavam a cavalaria de elite e serviam como guarda pretoniana do xá, mas seu relacionamento com o governante também era místico: o discíplo, murid, e o mestre Sufi, murshid. Extremamente leais ao seu líder e convencidos de sua invencibilidade, muitos deles foram à guerra sem armaduras. Eram adeptos de rituais que envolviam bebidas alcoólicas e, supostamente, canibalismo (contra seus inimigos). Junayd viveu entre estes nômades, treinou artes militares com eles, e conduziu-os em razias contra os habitantes cristãos do Cáucaso.


Muitas questões sobre o início da ordem Safávida permanecem obscuras. Um ponto de incerteza é precisar a natureza de suas crenças religiosas. Originalmente, eram sunitas, mas no século XV, acabaram por se tornar xiitas sob a influência de alguns turcos. Originando um "Islã de fronteira": uma mistura de crenças islâmicas, pré-islâmicas e elementos milenaristas. Seu sistema de crenças era influenciado pelo xiismo duodécimo e por noções xamanísticas e animistas que incluíam a crença na reencarnação e na transmigração das almas, como também a ideia de um líder investido com atributos divinos.


Foi com o filho de Haydar, Isma'il, que os Safávidas passaram de um movimento messiânico para uma dinastia política liderada por um shah (título real: xá, imperador da Pérsia), ao invés de um shaykh (xeique: "velho", líder de uma tribo: pessoa com autoridade - religiosa -, sábio: mestre sufi). Sob o governo de Isma'il, uma genealogia foi criada, na qual Safi al-Din descendia do sétimo Imam, Musa al-Kazim. Esta atitude mostra pouca preocupação com a doutrina oficial e marcou a fusão entre o poder secular e a fé. Seu instrumento foi os Qizilbash, devotos leais, que recebiam terras e serviam como tutores dos príncipes Safávidas. Em 1499, Isma'il emergiu da região do Mar Cáspio (Gilão), onde viveu sob a proteção de um governante local e preparou-se para conquistar a região Ocidental do Irã do domínio dos Aq-Quyunlu. Em 1501, com 15 anos, Isma'il proclamou-se , em Tabriz. Declarou que o xiismo seria a fé oficial do reino, desta maneira estabeleceu o seu Estado com uma forte base ideológica, enquanto organizou uma série de campanhas, com o apoio dos Qizilbash, submetendo áreas como a Anatólia Oriental e o Iraque. Em 1510, todo o território que hoje forma o atual Irã, com excessão da região nordeste do Khurasan, estava sob o domínio Safávida. Quando Isma'il tomou o Khurasan, derrotando Muhammad Shibani Khan Uzbeg, o Estado Safávida atingiu o ápice de sua expansão.



Imagem: Batalha de Chaldiran
Fonte: www.wikipedia.com

Isma'il sonhava reinar sobre uma Irã unido, muçulmano e xiita, liberto dos árabes, turcos e mongóis. Os principais rivais dos Safávidas eram os Otomanos, defensores do Islã sunita , que sentiram-se ameaçados pelo estabelecimento de um Estado xiita, próximo ao seu Império. As provocações dos Safávidas e rebeliões pró-Safávidas na Anatólia, foram a causa da expedição militar do Sultão Selim contra o Irã, numa campanha que culminou com a famosa Batalha de Chaldiran, em 1514, quando o exército Otomano equipado com artilharia de campo e armas de fogo, derrotou as forças de Isma'il, que lutavam com arco e flecha.


Não obstante a derrota, Isma'il viria a fundar uma dinastia e a construir um Império no qual introduziu reformas religiosas radicais. A Irmandade Safávida baseava-se numa ordem sunita sufi e Isma'il foi o responsável pela proclamação do xiismo como religião oficial do Estado, um legado Safávida determinante para a História do Irã. A este propósito, os historiadores e islamólogos não tem certeza quanto a dois fatos: não sabem quando é que os líderes da Irmandade Safávida adotaram o xiismo, e ao fazerem esta opção, se ela foi realizada antes ou por Isma'il. Sabe-se que durante poucos anos da sua juventude, o xá foi protegido por um governante local xiita e pode ter adquirido suas convicções religiosas a partir desta experiência. Uma coisa parece certa, quaisquer que tenham sido as causas para a adoção do xiismo, Isma'il tornou-se um xiita dedicado e absolutamente determinado a coagir os habitantes dos territórios por ele controlados a adotar a fé xiita. O seu pragmatismo levou-o a dissolver as irmandades sunitas e a ordenar a execução de todos aqueles que se recusassem a aceitar o xiismo. Como não havia qualquer estabelecimento xiita no Irã, Isma'il viria a criá-lo “importando” vários mujtahidin (no xiismo, legistas religiosos qualificados a enunciar interpretações pessoais) oriundos dos territórios árabes, em particular do Líbano. A essas personalidades coube preencher a lacuna existente ao nível dos graus mais elevados da hierarquia religiosa e desbravar o caminho para a emergência de uma classe de mujtahidin. Apesar de todo este esforço, a versão do xiismo imanita promulgada por Isma'il conteve importantes desvios doutrinários. O xá reivindicava ser descendente do 7º Imã – Mouz al-Kazem – e ser divinamente inspirado por este Homem Santo, chegando ao ponto de ser ter declarado o representante terreno do Imã Oculto, atribuindo a si próprio poderes para proferir juízos infalíveis em questões de religiosidade e jurisprudência.


O longo convívio com Zaydi Shi'i Lahijan familiarizou Isma'il com o discurso xiita, por exemplo, a consciência ao se referir como “o perfeito, o Imã justo” (al-imam al-adil al-kamil) ou “o sultão justo” (al-sultan al-adil), pode aludir ao seu estatuto como sucessor secular de seu avô Uzun Hasan, e de acordo com a tradição duodécima, como sendo o 12º Imã. Alguns contos populares identificava Isma'il com Abu Muslim, o líder dos exércitos árabes baseado em Khurasan, que derrotou os Omíadas, em 765 - acreditavam que Abu Muslim estava escondido e voltaria para restaurar a ordem no mundo.

Imagem: Templo de Fatimah al'Masumah (Qom, Irã), construído durante o governo do Shah Abbas I. Fátimah era filha do sétimo Imã do xiismo duodécimo, Musa al-Khadim, e irmã do oitavo Imã, `Ali ar-Ridha.

Fonte: COSTA, Helder, Santos, Da Pérsia Safávida ao Irão Pahlavi (Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2005).


O discurso religioso pós-Chaldiran foi marcado por uma crescente identificação Safávida com o xiismo duodécimo, particularmente com seus ideais messiânicos. Na Masjed-e Ali, em Isfahan (1522), há inscrições citando o nome de Isma'il doze vezes, a mesma quantidade de imãs do xiismo duodécimo. O cronograma, “Ele chegou, aquele que abrirá as Portas”, claramente implicava o estatuto supramortal de Isma'il. Sua esposa, Khanum, também participou da identificação Safávida com o xiismo e, em 1522, doou fazendas, jardins e vilas de sua propriedade nas redondezas de Varamin, Qum e Qazvin à um templo de Fátima, a irmã do 8º Imã, em Qum, e encorajou a construção de outros edifícios religiosos. Ela financiou a restauração de uma ponte no Leste do Azerbaijão e promoveu o estatuto de seu marido como chefe da ordem sufi Safávida. Tajlu Khanum também financiou parte do mausoléu de Isma'il, em Ardabil. Assim como fez Khanum, seu marido também restaurou e construiu vários templos e outras construções neste período.


Imagem: Masjed-e Shah, hoje conhecida como Mesquita do Imã, foi construída em 1611.

Fonte: Joaquim Castilho.


O Shah Isma'il morreu em 1524 e foi sucedido pelo seu filho de dez anos, Tahmasb. Pela sua idade, o poder de fato foi exercido por um corpo de regentes Qizilbash. Apenas após 10 anos de guerra civil entre os Qizilbash, que Tahmasb consolidou seu poder. Tahmasb fez grandes esforços para consolidar o xiismo em seu reino, através de forte propaganda religiosa, cuja tarefa era difamar os sunitas, principalmente amaldiçoando os primeiros três califas, vistos como usurpadores do primeiro imã xiita, `Ali. Para disseminar o xiismo, fortalecer sua legitimação como líder xiita e construir um quadro religioso sem laços com nenhuma tribo ou etnia, o xá convidou estudiosos do mundo árabe/muçulmano, principalmente do Líbano, para migrarem para o Irã. Muitos aceitaram, atraídos pela oferta de terras, dinheiro e altas posições na burocracia.

Imagem: Masjed-e Sheikh Lotf-ollah (Isfahan). Esta mesquita foi construída durante o governo do Shah Abbas I, 1615-1618.
Fonte: COSTA, Helder, Santos, Da Pérsia Safávida ao Irão Pahlavi (Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2005).

Após a derrota de seu pai em Chaldiran, o reinado de Tahmasb viu crescer o papel do xá como representante do Imã Oculto. O xiismo duodécimo acredita em 12 Imãs, `Ali e seus descendentes, sendo que o último deles desapareceu, mas seus seguidores creem que o Imã Oculto retornará no futuro, na figura do messiânico Mahdi. Shah Isma'il representou um mundo primordial, semi-pagão, no qual rituais de orgia que envolviam muita bebida e práticas sexuais misturaram-se, de uma forma peculiar, ao apelo da legitimação islâmica de sua dinastia. Tahmasb inaugurou uma nova uma fase de grande ênfase em relação ao comportamento religioso. Era um grande devoto e, de acordo com alguns, um governante melancólico que raramente aparecia em público.


Imagem: Abbas I
Fonte: www.guardian.co.uk

Abbas I é considerado o maior governante Safávida, seu reinado marcou uma fase crucial para a evolução da dinastia Safávida, de uma formação tribal para um Estado (quasi-) burocrático. As crônicas mais antigas redigiam uma História universal, para legitimar as reivindicações turco-mongóis, mas as escritas a partir do reinado Abbas I, enfatizavam mais o caráter iraniano dos governantes Safávidas. O xá, quando jovem, reconhecia que os Qizilbash tinham qualidades guerreiras, mas olhava-os com desconfiança. Para erradicar sua influência no aparelho estatal, Abbas I reorganizou o exército concedendo-lhe uma estrutura permanente - algo novo no Irã. Desta maneira, iniciou-se o recrutamento dos ghulam, mercenários devotos do monarca, recutados em todas as tribos e das mais diversas nacionalidades. Muitos desses homens tinham sido feitos prisioneiros no decurso das guerras no Cáucaso e foram convertidos ao Islã. Outra medida, foi a redução do número de províncias (mamalik), que se encontravam sob a tutela dos qizilbash, e o aumento do número de províncias sob a administração direta do monarca (Khassas) - medida que aumentou significativamente as receitas do Estado, sendo aspecto importante para a caracterização do Estado safávida, como um Estado Moderno. Transferiu a capital de Kazwan para Isfahan. Depois ordenou a construção de uma cidade inteiramente nova ao lado da cidade antiga. Isfahan viria a ser uma metrópole própera, onde seriam acolhidos os políticos e os diplomatas do Ocidente, quando em visita à Corte de Abbas I. O soberano lançou uma série de ofensivas contra os Otomanos e Tabriz foi reconquistada. Por fim, em 1624, Bagdá foi conquistada.

Durante seu reinado, os Safávidas, auxiliados pelos navios da Companhia Inglesa das Índias Orientais, conseguiram expulsar os portugueses de Ormuz, em 1622. O Estado com foco na cultura iraniana refletiu-se em trabalhos religiosos compostos em língua persa, além da substituição do árabe pelo persa. Abbas I, o Grande, é conhecido como tendo sido um brilhante unificador, pacificador e administrador; além disso durante seu reinado foram construídos e reformados diversos edifícios religiosos para a reafirmação da dinastia como difusora da fé xiita. Ao apogeu atingido pelo reinado de Abbas I seguiu-se um período de nítida decadência, pois seus sucessores se mostraram incapazes de preservar todo o seu legado. Durante, o declínio da dinastia, observou-se perseguições a cristãos, judeus e filósofos muçulmanos não conformistas. Paralelamente, a influência dos mujahiddin aumentou e o clero xiita aproveitou para banir os sunitas residentes no país. A queda dos Safávidas também conduziu a um largo período de descentralização política.


É importante ressaltar o período Safávida como crucial para implementação do xiismo como religião oficial do Irã, além disso os ideais messiânicos e de martírio do xiismo influenciaram profundamente a sociedade iraniana. De acordo com a ideologia safávida o representante do Imam Oculto era o xá, porém com a queda da dinastia em 1722, o clero xiita começou assumir o direito de ser seu representante. No próximo post iremos tratar como ocorreu esta mudança e quais seus reflexos para o atual Irã.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Cuju: O futebol surgiu na China?


Imagem: Brasil 4 x 0 China - Copa do Mundo do Japão e da Coreia, em 2002. Foi neste mundial que a China fez sua primeira participação e o Brasil sagrou-se pentacampeão.
Fonte: www.xinhuanet.com

Os chineses praticavam diversas atividades esportivas associadas, entre outras coisas, com rituais, treinamento militar, costumes sociais, filosofia, saúde e até com o tratamento médico. Especialistas identificaram os primeiros sinais de atividades físicas em cavernas da vila de Zoukoudian, perto de Beijing - no mesmo sítio onde foi encontrado o Homem de Pequim. Os chineses praticavam vários tipos de esportes, que acabaram por chamar a atenção de alguns historiadores, por causa de suas similaridades com os esportes modernos.

Imagem: Chineses demonstrando suas habilidades com a bola.
Fonte: www.chinaculture.org

Alguns historiadores declararam que o jogo cuju - cu: "chutar" e ju: "bola" e sua pronúncia é algo como "tsudji" - é uma evidência de que uma versão de futebol foi primeiramente desenvolvida no Extremo Oriente. A tradição indica que foi o Imperador Amarelo que inventou este esporte, quando ao vencer seu inimigo Chiyou, utilizou sua cabeça para entreter seus soldados, nesta ocasião o termo cuju foi utilizado pela primeira vez. Historicamente, o cuju provavelmente tem sua origem a partir de um jogo popular que tornou-se uma atividade de preparação e treinamento militar. Com uma história de cerca de 2300 anos, o esporte teria surgido em Linzi, capital do Estado de Qi, durante do Período do Outono e da Primavera (722-481 a.C.) ou no Período dos Reinos Combatentes (403-221 a.C.). Os primeiros relatos sobre sua prática aparecem no período Han (206 a.C.-220 d.C), quando sua prática foi padronizada. Seu propósito era manter o condicionamento dos soldados, mas também era uma forma de entretenimento e um esporte de competição, com regras, capitães e árbitros. O cuju transcedeu todas as classes: intelectuais e camponeses praticavam o esporte. O pai do primeiro imperador Han, Gaozu (Liu Bang, 256/247-195 d.C.), era um admirador do cuju, e ao mudar-se para corte, o imperador começou a organizar diversos jogos para entreter seu pai e a nobreza chinesa. Há relatos de que o Imperador Wudi gostava muito de cuju e muitas partidas eram realizadas dentro do palácio imperial. Há evidências de jogadores profissionais e até mulheres adeptas do esporte - incluindo uma garota de apenas 17 anos, que venceu um time de jogadores profissionais. Imperadores e membros da nobreza possuíam campos, onde organizavam partidas com os melhores jogadores. Antigos relatos demonstram a importância do cuju na sociedade chinesa tradicional. Durante esta época, Xiang Chu, um fã de "futebol", foi examinado pelo famoso doutor Chun Yuyi, que proibiu-o de praticar o cuju, ignorando suas sugestões o atleta acabou falecendo por hematêmese.

O poeta Li You (55-135) descreveu o jogo como um microcosmo da vida cotidiana e a representação do yin e yang. Durante a Dinastia Wei (220-265), o cuju ganhou interpretações mais simbólicas, sugerindo que o campo representava a Terra; a bola, um dos corpos celestes; e os jogadores, os signos do zodíaco.

Imagem: Mulheres praticando cuju
Fonte: www.chinaculture.org


Imagem: Cuju jogado apenas com um gol
Fonte: www.chinaculture.org

Os chineses jogavam cuju numa área delimitada por uma parede retangular. No início, o gol era marcado quando a bola entrava dentro de um buraco, mais tarde foram introduzidas redes sustentadas por dois bambus. Havia quadras com até seis gols, mas o mais comum era o campo com apenas um gol - ao centro dele - que era defendido e atacado pelas duas equipes. Como no futebol moderno, parece que o time que fizesse mais gols tornava-se vencedor. No início usava-se uma bola feita com couro - sem câmara de ar e provavelmente preenchida com penas de aves -, mas a partir do século V d.C., foi introduzida uma bola feita com bexiga de animais, tornando-a mais leve. O número de jogadores que compunham o time variou com o tempo, mas o número 6 (harmonia) era o mais comum. Em algumas versões do jogo, demonstrar habilidade através de embaixadinhas e passes sem deixar cair a bola eram o principal objetivo. O conceito oriental de prática esportiva dá uma menor ênfase ao espírito competitivo, se comparado com a cultura ocidental. Pude conferir estas desmonstrações de habilidade com os pé em diversos parques e praças da China e do Sudeste Asiático, mas ao invés da bola é mais comum o uso da peteca. Como muitos dos esportes chineses, os textos enfatizam que sua prática deveria prevalecer o espírito de lealdade e imparcialidade. Durante a Dinastia Tang (618-907), o cuju passou a ser praticado, com algumas modificações, no Japão (chamado de kemari) e na Coreia.

Imagem: O cuju durante a Dinastia Han.
Fonte: www.chinaculture.org

Havia basicamente duas maneiras de jogar cuju: o Zhu Qiu e o Da Bai:

Zhu Qiu: era geralmente praticado durante as festas de comemoração do aniversário do imperador, ou eventos diplomáticos. Nesta versão, cada equipe era constituída de 12-16 jogadores.


Da Bai: foi o estilo dominante durante a Dinastia Song. Esta versão presava pelo desenvolvimento das habilidades individuais. O gol tornou-se obsoleto, o campo foi delimitado apenas por um fio e o número de faltas indicava o vencedor. A quantidade de jogadores variou entre 2 e 10.

Imagem: Nobres durante a prática do cuju
Fonte: www.chinaculture.org

Imagem: espelho de cobre com detalhes com pessoas jogando cuju (Dinastia Song).
Fonte: www.chinaculture.org

Com o desenvolvimento econômico e cultural, durante a Dinastia Song (960-1279), o cuju tornou-se cada vez mais popular, sendo praticado por membros de todos os grupos sociais. Nesta época apareceram os primeiros jogadores "profissionais" de cuju e foram criadas as primeiras Organizações de cuju, como o Qi Yun She ou Yuan She - considerado o clube mais antigo de cuju -, do qual seus membros eram amantes ou "profissionais" deste esporte. Os jogadores "não-profissionais" tinham que nomear formalmente um profissional como seu professor e pagar uma taxa antes de se tornar membro da associação. Este processo garantiu a renda dos "profissionais". Durante a Dinastia Qing, o cuju começou a perder popularidade.


Imagem: O Presidente da FIFA, Joseph Blatter, durante a III Exposição Internacional sobre Futebol da FIFA, em 2004.

Em 09 de Junho de 2004, durante o Fórum sobre a Origem do Futebol, realizado em Zibo (Shandong), foi decretado que o futebol surgiu na cidade de Linzi, capital do Estado de Qi. Em 15 de Julho de 2004, numa conferência de imprensa durante a III Exposição Internacional sobre Futebol da FIFA, o presidente da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), Joseph Blatter, - talvez mais preocupado em "fazer" política e provover o futebol no concorrido mercado consumidor chinês, do que interpretar os fatos históricos - declarou que o cuju foi o antecessor do futebol moderno. Na Copa do Mundo de 2006, disputada na Alemanha, foi organizada uma exposição sob o cuju, onde foi discutido o seu papel como uma das origens do futebol (página do site da FIFA sobre a origem do futebol: http://www.fifa.com/classicfootball/history/game/historygame1.html). Apesar das suas semelhanças com o futebol moderno, é importante ser cauteloso e não utilizar conceitos modernos para interpretar culturas e atividades antigas e lembrar que o futebol moderno não surgiu da evolução do cuju. Porém deve-se ressaltar que os primeiros relatos sobre o cuju são um dos mais antigos sobre um esporte que utiliza uma bola e é jogado com o pé, além de algumas incríveis coincidências do seu modo de jogar com o futebol moderno. Outros jogos com bola surgiram em diversas partes do mundo, como no Antigo Egito; o episkyros, na Grécia Antiga; o harpastum, na Roma Antiga; o calcio, na Italia Renascentista e o pok thai pok na Mesoamérica.

Imagem: Objeto de marfim ornamentado com desenhos representando a prática do cuju (Dinastia Song)
Fonte: www.chinaculture.org







Imagem: Porcelana com desenhos de crianças praticando o cuju (Dinastia Qing)
Fonte: www.chinaculture.org