sexta-feira, 9 de abril de 2010

Avatar e o Avatāra


Imagem: cena do filme Avatar, de James Cameron
Fonte: www.cineplayers.com.br

Nosso intuito neste post não é fazer uma resenha crítica do filme Avatar (James Cameron, Avatar, 2009), aliás nenhum dos nossos colaboradores assistiram ao filme. Atualmente a palavra avatar entrou para o vocabulário da cultura pop, além do filme de James Cameron, os "twitteiros" costumam a chamar seus profiles de avatar, jogadores do game The Sims também utilizam esta expressão e até mesmo o cinema já discutiu anteriormente este tema com Matrix (Larry Wachowski, Andy Wachowski, The Matrix, 1999). Mas o Avatar de James Cameron é o filme que mais emula o conceito hindu de Avatāra*, onde Jake Sully, um militar preso à uma cadeira de rodas, participa de um programa chamado Avatar, que o permite assumir o corpo de um Na'Vi (espécie habitante do planeta Pandora), para conhecer um pouco mais sobre os nativos. Nosso objetivo aqui não é discutir a influência hindu no trabalho de James Cameron, mas demonstrar a origem do termo avatar e trabalhar o conceito de avatara presente na cultura hindu.

Visnu:

Segundo Cybelle Shattuck, a característica principal do Hinduísmo clássico é o teísmo, onde as divindades locais eram transformadas em deuses universais através de uma identificação com uma divindade "Suprema". Os que acreditavam em Visnu como deus mais importante chamavam-se vaishnavas. Os que nomeiam Siva como "Suprema" são os xaivas. Os devotos de Devi, a deusa, chamam-se xaktas porque o cosmo manifesta-se em Xakti, uma energia feminina. Desde a época clássica aos tempos modernos, estas três grandes divindades são o centro do Hinduísmo.


Imagem: Representação do deus Visnu
Fonte: http://www.dailymail.co.uk/

Para o vaishnava, ou seja, o devoto de Visnu, este deus é a fonte do universo e de todas as coisas. De acordo com o mais famoso mito cósmico do Hinduísmo, este deus dorme no oceano primário sobre a cobra de mil cabeças , Sesa. Enquanto dormia uma lótus cresceu em seu umbigo e dela nasceu Brahma, o criador do mundo. Assim que o mundo foi criado Viṣṇu acordou, para reinar sob o céu (Vaikuntha). O deus é geralmente representado como um homem de quatro braços, de cor azul escuro, sentado em seu trono com sua coroa, trazendo consigo seus emblemas: a concha, o disco, o bastão e a lotus - usando sua jóia sagrada (Kausthuba) com um ramalhete de cabelo cacheado sobre seu peito. Sua esposa, Laksmi, é uma importante deusa.

A condição de Viṣṇu como o Deus Universal, do qual todos os outros deuses são suas expressões ou emanações, é descrita primeiramente no Bhagavad Gita. Sua contraparte Siva é feroz e perigoso enquanto Visnu é geralmente visto como benevolente. Este deus trabalha intermitentemente para o bem-estar do mundo.

Imagem: Representação de Visnu, em Angkor Wat (Camboja)
Fonte: http://www.cis.nctu.edu.tw/~whtsai/Angkor_Wat/Pages/Glossary.htm

Os avataras (descendentes) ou "encarnações" de Visnu são, de acordo com a classificação mais popular, dez. As divindades e heróis que compõem a lista foram adotados pelo vaishnaismo em diferentes épocas, mas todas já haviam sido incorporadas até o século XI de nossa era. É possivel que a doutrina vaishnava de "encarnação" esteja relacionada com as doutrinas budistas e jainistas. Segundo Nicholas Sutton, no Mahabharata encontra-se as primeiras noções do avatara na tradição hindu e descreve como Viṣṇu desceu a Terra e trouxe a vitória aos Pandavas. Uma encarnação pode ser total ou parcial. Todo deus ou grande homem era encarado como uma "encarnação" parcial de Viṣṇu. Os dez principais avataras são especiais, pois neles este deus viria salvar o mundo de um perigo eminente de total destruição.

Os avataras de Visnu:

Imagem: Matsya (O Peixe)

O Peixe (Matsya): quando a Terra estava sendo destruída por um dilúvio universal, Visnu transformou-se em peixe e informou Manu (uma espécie de Adão hindu) do perigo e salvou-o junto com sua família e os setes grandes sábios num navio preso à um chifre em sua cabeça - Matsya também salvou os Vedas da enchente. Este peixe legendário aparece pela primeira vez nos Brahmanas.

Imagem: Kurma (a Tartaruga)

A Tartaruga (Kurma): muitos tesouros divinos haviam sido perdidos no dilúvio, incluindo a ambrosia (amrta), na qual os deuses preservavam sua juventude. Visnu "encarnou" em uma grande tartaruga e nadou até o fundo do oceano cósmico. Em suas costas os deuses colocaram o Monte Mandara e a cobra divina Vasuki, que estava enrolada na montanha. Um leiteiro indiano preparou uma manteiga, rodando a montanha e encantou a serpente, do ocenano emergiu a ambrosia e vários outros tesouros, incluindo a deusa Laksmi. Esta história é provavelmente um antigo folclore e a identificação de Visnu com a tartaruga é posterior.

Imagem: Respresentação de Maraha em um dos monumentos de Khajuraho (Madhya Pradesh, Índia)

O porco do mato, javali, varrão (Varaha): um demônio, Hiranyaksa, arremessou a Terra ao fundo do oceano cósmico. Visnu se transformou em um enorme javali, matou o demônio e trouxe novamente a Terra para seu lugar. Esta lenda é contada nos Brahmanas, mas provavelmente tem origem num culto primitivo ao porco sagrado não-ariano. O culto ao avatara do javali era importante em algumas partes da Índia no período Gupta.

Imagem: Narasimha representado em Angkor Wat (Camboja)


O Homem Leão (Narasimha): Outro demônio, Hiranyakasipu, obteve uma dádiva de Brahma, onde não poderia ser morto nem de dia, nem de noite por um deus, homem ou besta. O demônio perseguiu deuses e homens, incluindo o filho de Prahlada. Quando Prahlada pediu socorro à Visnu para derrotar o demônio durante o por-do-sol, o deus tomou forma de um homem-leão e matou Hiranyakasipu. Narasimha era cultuado como uma divindade especial (istadevata) por uma pequena seita e era frequentemente reproduzido em esculturas.

Imagem: Representação e Vamana num Gopuram (torre monumental) no templo Balaji Mandir em Pashan, um subúrbio de Pune (Maharashtra, Índia).

O anão (Vamana): o demônio chamado Bali controlava o mundo e quando tornou-se asceta seus poderes aumentaram, o que ameaçava os deuses. Visnu apareceu em forma de anão e perguntou-lhe qual a distância ele poderia percorrer em apenas uma caminhada. Visnu transformou-se em um gigante em percorreu a Terra, o céu, deixando apenas as regiões sombrias para o demônio.

Imagem: Parasurama
Fonte:
http://www.bronzecreative.com/parashurama-avatar-vishnu-rama-axe.html

Parasurama (Rama com machado): Visnu encarnou como filho do brâmane (brahman) Jamadagni. Quando seu pai foi roubado pelo rei Kartavirya, Parasurama o matou. Jamadagni foi assassinado pelos filhos de Kartavirya; posteriormente num momento de fúria, Parasurama destruiu todos os homens da classe ksatriya.


Imagem: Rama representado no filme Quem quer ser um milionário? (Danny Boyle, Slumdog Millionaire, 2008)
Fonte:
http://www.hindujagruti.org/

Rama, Príncipe de Ayodhya e herói do Ramayana: Visnu "encarnou" nesta forma para salvar o mundo do opressor demônio Ravana. Segundo A. L. Basham, Rama provavelmente foi um líder que viveu entre os séculos VIII e VII A.C., e na forma mais primitiva de sua história não possuia atributos divinos. Seu culto desenvolveu posteriormente à Krsna, mesmo sendo considerado uma encarnação anterior. Rama é comumente descrito com pele escura e segurando um arco e flecha (os Na´Vi lembram muito Rama). Sua esposa Sita é considerada a personificação da fidelidade da mulher. Para seus devotos Rama combina os ideais de gentileza, do bom marido, grande líder e rei benevolente. O seu culto apenas se tornou significante após a chegada do Islã à Índia.

Imagem: Krsna e Yasoda
Fonte:
http://ppisr.res.in/~srik/gitopanishad/index.html

Krsna: é o mais importante dos avataras de Visnu. Krsna nasceu em Mathura, na tribo dos Yadavas. Seu pai era Vasudeva, sua mãe se chamava Devaki e seu tio era o Rei Kamsa. Foi profetizado que Kamsa seria assassinado pelo oitavo filho de Devaki, sendo assim o rei quis eliminar todos seus filhos. Mas Krsina e seu irmão mais velho, Balarama, foram salvos por Nanda e sua esposa Yasoda. Kamsa descobriu que as crianças haviam fugido e ordenou que todos os meninos do reino fossem mortos, mas Nanda conseguiu esconder os filhos de Devaki.

Durante sua infância o avatara do deus realizou diversos milagres, matou demônios e salvou pessoas de uma tempestade segurando o Monte Govardhana sob suas cabeças com apenas um dedo. Durante sua adolescência teve muitos casos com esposas e filhas dos gopis (pastores), mas sua favorita era a linda Radha.

Imagem: Krsna e Radha
Fonte:
http://ppisr.res.in/~srik/

Um dia Krsna largou sua vida de simples pastor, matou Kamsa e invadiu o reino de Mathura, mas pressionado por Jarasandha (Rei de Magadha) e por um "outro rei do noroeste", o avatara de Visnu foi forçado a deixar o reino. Seus seguidores fundaram uma nova capital Dvaraka em Kathiawar. Krsna fez de Rukmini (filha do rei de Vidarbha - hoje Berar), sua rainha, entretanto tinha outras 16 000 esposas e 180 000 filhos. Nesta época conquistou outros reinos e matou diversos demônios. Pela história contada no Mahabharata, Krsna era conselheiro dos cinco Pandavas e pregou o grande sermão do Bhagavad Gita para Arjuna, antes da batalha principal deste épico.

Depois de ver os Pandavas seguros na terra de Kuru, Krsna retornou à Dvaraka. Lá haviam muitas pessoas tramando contra ele, Krsna aboliu as "bebidas fortes", na esperança de acabar com o mal. Em um festival o avatara de Visnu liberou o consumo destas bebidas e os líderes Yadava rebelaram-se, Krsna nada podia fazer para acalmar o povo. Seu filho Pradyumma foi morto diante de seus olhos. Krsna fugiu para uma floresta, mas foi atingido por uma flecha em seu vulnerável calcanhar (como Aquiles) e morreu. A cidade de Dvaraka foi engolida pelo mar.

Krsna recebeu muita importância na tradição ortodoxa, desde muito cedo. Um filho de Krsna foi mencionado nos Upanisads, estudando as novas doutrinas da alma e parece que existem algumas bases históricas sobre a lenda do herói-deus. Segundo A. L. Basham, o mito de Krsna pode ter sido composto por diversas histórias de muitos heróis de todo subcontinente indiano. Alguns elementos da história, como a destruição dos Tadavas e a morte do deus, parecem ser não-indianos. O tema da embriaguês, do herói morto por uma flecha num ponto vulnerável e a cidade engolida pelo mar são comuns à literatura épica européia, mas não é muito comum na Índia. O conceito de "deus mortal", tão generalizado no "Oriente Próximo", também é incomum na Índia. Kamsa, o tio fraco, lembra Acrísio, o cruel avô de Perseu. Algumas partes da história tem origens em tradições muito antigas, que podem ter sido elaboradas pelos arianos (Aryan), antes deles entrarem na Índia; outras parecem ter origem no próprio subcontinente e outras inspiradas em alguns contos de origem ocidental.


O aspecto pastoral e erótico de Krsna tem origem evidentemente diferente do Krsna, o herói-deus. Seu nome significa "preto" e o deus é geralmente descrito com esta cor. Talvez a referência mais antiga ao Krsna pastor são as antigas antologias Tamil, onde "o Negro (Mayon) toca flauta e pratica esportes. Deve ter sido originalmente o deus da fertilidade da Península, cujo culto foi difundido ao norte por tribos nômades.

Imagem: Escultura em bronze que representa Arjuna e Krsna juntos num carro-de-guerra em Kurukshetra (Haryana, Índia)

Fonte: http://www.travelpod.com/travel-photo/ulka/1/1259078561/kurukshetra-arjuna-krishna.jpg/tpod.html

As aventuras eróticas do jovem Krsna tem um fraco componente religioso e parece ter origem na literatura erótica. Entretanto o amor do deus pelas esposas dos camponeses é interpretado como símbolo do amor de Deus pela alma humana. A infância de Krsna foi provavelmente o último elemento a ser incorporado à sua lenda e sua origem é desconhecida. Pode ter sido parcialmente inspirada em contos trazidos por mercadores cristãos ou missionários nestorianos no início do período medieval. O culto à infância de Krsna faz um apelo especial à maternidade.

Vasudeva, um deus muito popular na Índia ocidental durante a antiguidade, era identificado com Krsna e pode ter sido falsamente interpretado como o pai de Krsna, chamado Vasudeva (com o a curto na primeira sílaba). Outras divindades, originalmente independentes, eram associadas com Krsna. O líder destas deidades era Balarama, também chamado de Halayudha ("armado com o arado") e Sankarsana. Balarama era originalmente uma deidade ligada à agricultura. Tradicionalmente era um grande bebedor, sua importância diminuiu no período medieval, em contrapartida a populariedade de Krsna aumentou. Menos importantes eram os cultos ao filho de Krsna Pradyumma, do seu neto Aniruddha e seu amigo Arjuna (o herói Pandava). A líder feminina associada à Krsna era Radha, sua amada durante sua juventude, cultuada frequentemente junto com o deus no final do período medieval.

Segundo Nicholas Sutton, a doutrina do avatara fez surgir diversas controvérsias relativas à natureza de Visnu, sendo ela humana ou divina. O corpo encarnado era composto de matéria orgânica ou algum tipo de forma espírita. Alguns vaishanavas, como Ramanuja e os seguidores de Caitanya acreditavam que o corpo de Krsna era completamente espiritual. Entretanto alguns teólogos afirmam que no Baghavata Purana, Krsna não parece possuir alguma idade em toda narrativa épica. No Gita, Krsna afirma: "situado na minha própria energia material, eu me manifesto com meu próprio poder." Esta ideia também pode ser argumentada pela morte de Krsna através de uma flecha. A moralidade do avatara é fonte para grandes discuções, porque enquanto a missão do avatara é preservar o dharma, em algumas ocasiões seu comportamento parece imoral e adhármico.

Imagem: Buddha
Fonte: www.wikipedia.com


Buddha: é a última encarnação histórica de Visnu. De acordo com a maioria dos teólogos hindus o deus tornou-se Buddha para iludir os mal-intensionados, liderando-os para negar os Vedas e assegurou as suas condenações. Buddha foi incluido à lista de encarnações, como outras deidades foram incluídas, para que os elementos heterodoxos fossem assimilados ao vaishnavismo: até recentemente o templo de Buddha em Gaya estava nas mãos dos hindus, onde Buddha era cultuado pelos hindus como um deus Hindu; mas geralmente pouca atenção era dada ao avatara Buddha.


Imagem: Kalkin
Fonte: http://www.exoticindiaart.com/

Kalkin o avatara esperado: no final da Idade das Trevas Visnu aparecerá como um homem montado num cavalo branco, com uma espada fumegante em sua mão. Ele irá julgar os malvados, reconhecerá os bons e restaurará a Era de Ouro. Esta é uma adição posterior ao mito vaishnava e não possui muita importância na literatura ou na iconografia; mas um representativo número de hindus levam Kalkin muito a sério, esperam por sua chegada assim como alguns cristãos esperam a segunda vinda de Cristo. Paralelos com a doutrina cristã são encontrados especialmente com os cavaleiros do Apocalipse, mas a principal inspiração de Kalkin pode vir do Budismo. Influências do zoroastrismo ajudaram na formação do mito.

* estamos com problemas em escrever os termos em sânscrito com a devida acentuação, o site www.blogspot.com não reconhece-a quando passamos o texto do Word para ele. Esperamos resolver este problema em breve.


Bibliografia:


  • BASHAM, A. L., The wonder that was India (Nova York: The Macmilan Co, 1959).
  • SHATTUCK, Cybelle, Hinduísmo (Lisboa: Edições 70, 1999).
  • SUTTON, Nicholas, Religious doctrines in the Mahabharata (Delhi: Shri Jainendra Press, 2000).

Um comentário:

  1. Ótimo post, é a mais sucinta e bem feita explicação dos avataras de Vishnu que já li em português.

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