segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Camboja, 1779-1863

Esse período da História do Camboja foi marcado por perdas territoriais, desordem política e guerras. As frequentes invasões das duas potências da região, Sião e Vietnã, causaram instabilidade, o enfraquecimento das instituições do reino e graves efeitos em sua economia. O reino perdeu território, população e, consequentemente, renda; em desespero a corte aumentou os impostos, porém esta medida fez com que os líderes regionais, que dominavam a população, se rebelassem contra o poder central. Facções rebeldes eram ao mesmo tempo causa e consequência da instabilidade política do reino. A desordem no Camboja atraiu os regimes recém-consolidados de Bangcoc e Huê, que ofereciam assistência à uma das facções cambojanas, aumentando o clima de instabilidade. O preço desta ajuda era alto, cobrava-se território, mão de obra e influência nas decisões da corte. Do ponto de vista do Camboja, a principal característica deste período foi a decadência.


Disputas entre facções rivais dominaram a corte do Camboja; durante o século XVIII, cerca de nove reis - cinco deles reinaram por mais de um único período - ocuparam o trono por apenas alguns meses. Os membros da corte que faziam parte da oposião fugiam para terras desocupadas no delta do Mekong, às vezes sob proteção do Sião, com o objetivo de formar tropas e conquistar o trono do Camboja. No final do século XVIII, os siameses influenciavam a corte cambojana, conduziam invasões e entronaram um "monarca fantoche", para assim dominar o reino.

Em 1779, o príncipe Ang Eng foi escolhido rei de um Estado onde o governo era conduzido por conselheiros pró-siameses. No final do século XVIII, o Vietnã estava devastado por uma guerra civil, a Rebelião Tay Son (1771-1802), e foi forçado a concordar temporariamente com esta situação. Nos próximos oitenta anos, apenas outros três monarcas, todos descendentes diretos de Ang Eng, ocuparam o trono. Esta estabilidade, entretanto, não foi acompanhada pelo poder real do monarca que, até a década de 1840, continuou a ser influenciado pelo Sião ou Vietnã.

Em 1794, Ang Eng viajou à Bangcoc para ser coroado por oficiais siameses, este tratou-se de um evento sem precedentes na História do Camboja. Pouco tempo depois, a corte siamesa indicou o oficial cambojano pró-Sião, Ben, para governar as províncias de Battambang e Angkor. Estas permaneceram sob administração siamesa - governada por Ben e seus descendentes - até que fossem restauradas pelo protetorado francês do Camboja, em 1907.

Quando Ang Eng morreu, em 1796, os siameses não indicaram um sucessor, mas continuaram a comandar o Camboja através de oficiais cambojanos indicados pelo Sião. Em 1805, o filho de Ang Eng, Ang Chan, foi coroado em Bangcoc. Ao retornar à sua capital, Ang Chan logo foi reconhecido pela recém-constituída dinastia Nguyen do Vietnã. O imperador vietnamita Gia Long, seguindo as práticas diplomáticas sino-vietnamitas, respondeu enviando à Ang chan um selo da corte vietnamita reconhecendo a condição do monarca cambojano. Nesta época, foi estabelecido que o Camboja pagaria um tributo quadrienal para a corte vietnamita. Esta via a relação tributária como uma forma de"civilizar" o Camboja, que, frente à crescente força do Vietnã na região e da necessidade de equilíbrio em relação à hegemonia do Sião, não tinha nenhuma outra alternativa.

Três dos irmãos de Ang Chan permaneceram em Bangcoc sob custódia da corte siamesa e acompanharam a invasão siamesa sobre o Camboja de 1811, que retirou Ang Chan do poder por alguns meses. Em 1812, Ang Chan reassumiu o trono, auxiliado por tropas enviadas pelo senhor do Gia Dinh (região sul do Vietnã), Le Van Duyet. Em 1816, sua corte tornou-se um "pássaro de duas cabeças", pagando tributo à Bangcoc e para Huê. Não há muitas fontes sobre os próximos quinze anos. O silêncio sugere que o Sião e o Vietnã, preocupados com a ameaça que cada um representava ao outro, atingiram uma espécie de modus vivendi, talvez delimitando a esfera de influência de cada potência sobre o Camboja. O viajante inglês, que atravessou a região em 1823, relatou que o reino estava dividido em três partes - a porção vietnamita, a siamesa e o centro controlado pela corte cambojana.

Entre 1829 e 1832, ocorreram revoltas nas províncias que faziam fornteira com o Sião, nesta ocasião a corte cambojana acusou os oficiais de serem simpáticos aos siameses, e procurou desmantelar os acordos diplomáticos com o Vietnã e o Sião. Em 1833, o exército siamês, acompanhado pelos irmãos desafetos de Ang Chan, invadiu o reino. Durante esta expedição, os siameses conquistaram alguns territórios vietnamitas; em resposta, os vietnamitas invadiram o Camboja, expulsaram os siameses e restauraram Ang Chan - este morreu pouco depois, em 1834. Depois de sua morte, a corte Nguyen institucionalizou o Camboja como parte dos seus domínios e tentou administrar diretamente o reino, através de oficiais vietnamitas.

Os motivos vietnamitas para esta decisão continuam incertos, provavelmente estavam relacionados à recente morte de Le Van Duyet. Anteriormente, os Nguyen tinham receio de que a conquista do Camboja poderia fortalecer o senhor de Gia Dinh, portanto a invasão do reino vizinho só ocorreu após a morte de Le Van Duyet.

Em Phnom Penh, os vietnamitas instalaram a filha adolescente de Ang Chan como rainha. Confusa, a garota nomeou duas de suas irmãs como vice-rainhas e entregou seu governo ao domínio dos mandarins vietnamitas. Em contraste aos siameses, que no período no qual dominaram o Camboja governavam através de instituições cambojanas, os vietnamitas tentaram implementar sua burocracia e rapidamente revoltas surgiram por todo reino. Os cambojanos rebelaram-se contra o sistema de registro de terras, o censo e os altos impostos; entretanto outras características da administração vietnamita, como alterações no quadro burocrático e a troca do nome de algumas províncias, devem ter ofendido a elite burocrática.

Em 1841, depois dos Nguyen exilarem a rainha do Camboja, em Huê, e a prisão dos irmãos de Ang Chan, uma série de revoltas ocorreram no sul do Vietnã. Como resultado, quando as tropas vietnamitas lutavam contra os cambojanos, os siameses avançaram com a esperança de coroar o irmão de Ang chan, Ang Duong. Nos próximos três anos, as crônicas relatam que o povo vivia na miséria, enquanto siameses e vietnamitas, ajudados por facções cambojanas rivais, lutavam entre si. Nas negociações de paz, em 1846, ambos os lados concordaram em se retirar do território cambojano e aceitar Ang Duong como rei. O tratado marcou o reinício da influência siamesa na corte cambojana. Para selar o acordo, Ang Duong foi coroado em sua capital, em 1848, por representantes enviados pelo Sião e pelo Vietnã.

Ironicamente, Ang Duong dividiu sua lealdade entre o Vietnã e o Sião, como uma maneira de livrá-lo da influência de ambas as potências regionais. Uma das suas primeiras ações ao assumir o trono foi proibir o uso da terminologia administrativa siamesa. Em 1853, Ang Duong secretamente manteve contato com a corte francesa e escreveu uma carta à Napoleão III, na qual oferecia respeito em troca de amizade. Os presentes que acompanhavam a carta foram perdidos durante a viagem e com eles a oportunidade para os franceses interfirirem na região. Ang Duong interpretou o silêncio de Napoleão em relação aos presentes como uma demonstração de indiferença. Em 1856, um oficial francês chamado Montigny foi ao Camboja negociar alguns tratados comerciais, mas Ang Duong recusou, pois anteriormente Montigny contou-lhe sobre seus planos com o Sião. Encorajado a aceitar a França como aliada, Ang Duong disse: "O que você quer que eu faça? eu já possuo dois mestres, que sempre mantem seus olhos fixados no que eu faço. Eles são meus vizinhos e a França está muito longe". O monarca poderia ter aceito as garantias informais dos franceses que fortaleceriam o seu poder em relação ao domínio siamês e vietnamita, mas a França, no final da década de 1850, já tinha outros planos em mente.

Quando Ang Duong morreu em 1860, foi sucedido por seu filho mais velho, Norodom. Durante os próximos cinco anos, Norodom enfrentou uma série de rebeliões dinásticas e religiosas, que enfraqueceram seu poder. Neste período, os franceses tentavam consolidar seu poder no delta do Mekong, quando o fizeram, no final da década de 1850, começaram a se interessar pelo Camboja, cujo potencial econômico era considerado enorme. Norodom aceitou seus presentes e a atenção prestada pelos oficiais da marinha francesa. Em 1863, Ang Duong assinou um acordo com os franceses no qual aceitava sua proteção - os franceses herdaram a suserania praticada pelos vietnamitas, quando iniciaram a conquista do Vietnã, a partir de 1858. Norodom neutralizou essa ação negociando um protocolo secreto com o Sião, prometendo lealdade em troca de ser coroado rei do Camboja. Nesta proposta, os siameses seriam tutores e protetores da monarquia cambojana. Convidado pelo rei Mongkut a ser coroado na capital siamesa, Norodom, em 1864, ouviu dizer que os franceses haviam dominado seu reino enquanto o monarca viajava pela costa. O controle francês instaurou-se menos de um ano depois.

sábado, 14 de agosto de 2010

Os Chineses Ultramarinos: conceitos

Imagem: A casa tradicional de um mercador chinês ultramarino geralmente possui dois pisos, o térreo corresponde à sua loja e o piso de cima encontra-se sua moradia (antigo bairro chinês de Hoi An, Vietnã)
Fonte: Diogo Farias

No estudo das comunidades chinesas do Sudeste Asiático, a primeira dificuldade é a ausência de palavras precisas, em mandarim, para definir os movimentos populacionais realizados pelo povo chinês. O termo qiao, que se associa à hua, não é neutro. Antes do Tratado de Tianjin (1888), designava a “residência temporária” de oficiais estrangeiros na China.


Atendendo a legislação de 1893, a expressão huaqiao estava reservada àqueles que estariam provisoriamente no estrangeiro. Entretanto, o termo huaqiao foi objeto de numerosas polêmicas, porque certos emigrados chineses não se consideravam mais como residentes temporários e sentiam-se cada vez menos ligados a China continental. Estes preferiam termos como huaren ( chineses que residem fora da China) e huayi (descendentes de chineses, que possuem uma identidade nacional diferente em comparação aos imigrantes chineses recém-chegados).


A expressão mais apropriada para os definir chineses que vivem fora da China é “chineses ultramarinos”, que abrange:

  • Os imigrantes temporários;

  • Nacionais chineses residentes no estrangeiro;

  • Os chineses naturalizados, mas cujo sentimento de pertencer ao mundo chinês continua forte;

  • Os chineses naturalizados mais ou menos assimilados em seu país atual.


Em 1980, a República Popular da China promulgou uma lei proibindo a dupla nacionalidade. Os descendentes de chineses que não tivessem exclusivamente um passaporte de Beijing, não poderiam ser considerados cidadãos chineses.


A imigração chinesa é realizada por indivíduos que compartilham a mesma língua, escrita, cultura e a consciência de uma identidade própria. Entretanto, estes são provenientes de grupos geolinguísticos extremamente variados. A tradição chinesa tem origem na civilização Han, que se desenvolveu nas planícies centrais da China atual, absorvendo povos estrangeiros considerados como sinobárbaros.


As populações do vale do Rio Yangzi (Chang Jiang) foram assimiladas e integradas, pela civilização Han. O “Império Histórico” era muito menor do que a “China” que conhecemos hoje. A migração seguida pela colonização extendeu a área do povoamento, da cultura e do poder político chinês; além do seu ponto de partida original. O mundo chinês cresceu com a absorção de novos territórios e pela sinização dos seus habitantes nativos.


Somente a partir da Dinastia Tang (618-907), a etnia Han começou instalar-se realmente no sul da China. Esta dinastia empreendeu de forma massiva a colonização do Guangdong, nos séculos VIII e X. Durante a Dinastia Song (960-1368), os han chegaram em números consideráveis ao Fujian e somente no século XI, em Hainan.


Os chineses não resistiram aos ataques e a influência dos “bárbaros” turco-mongóis ao norte e a oeste, e dos “bárbaros” do sul, os yue. A primeira consequência, foi uma incrível fragmentação social do sul da China, que diferenciou muito os chineses meridionais dos setentrionais. A principal diferença reside no poder da estrutura de linhagem e clânica, e nos diversos estilos de organizações associativas. Estas particularidades consequentemente são sensíveis em todas as práticas sociais e religiosas.


A expressão mais marcante dos particularismos, entre as diferentes comunidades chinesas ultramarinas, origina da diversidade linguística do sul da China. Dezenas de dialetos, não compreensíveis entre si, coabitam em vilas próximas uma das outras. A China esta dividida em três grupos linguísticos principais: o grupo do Norte (mandarim e seus derivados), o grupo do Sul (yue, min, kejia) e um grupo intermediário, o wu de Shanghai.


A língua é o primeiro elemento constituinte da identidade do chinês ultramarino. O nome de sua vila, a província de origem ou a zona onde é falado o dialeto de seus pais, são as suas principais formas de identificação. As diferenças linguísticas entre as diversas populações que compõem as comunidades chinesas do Sueste Asiático são relevantes. Muitos chineses ultramarinos não se compreendem entre si, mesmo compartilhando a mesma escrita.


Para complicar, pessoas aparentemente do mesmo grupo linguístico, não compartilham necessariamente a mesma identidade cultural. Os chineses do Fujian (Hokkien), falantes do minnan (Quanzhou e Zhangzhou), são incapazes de compreender os moradores de Chaozhou (Teochiu), que falam um dialeto derivado do minnan.


Os chineses ultramarinos procuram emigrar para áreas onde possam encontrar pessoas com costumes semelhantes, assim as comunidades ultramarinas são marcadas por uma forte afinidade linguística (hokkien com hokkien, teochiu com teochiu, hakkas com hakkas).


A língua mais falada na China, é o mandarim. Hoje, muitos chineses ultramarinos preferem estudar o mandarim, em vez das línguas faladas pelos seus ancestrais. Este novo fenômeno, deve-se à busca de melhores oportunidades profissionais, concedidas aos falantes do mandarim.


quarta-feira, 4 de agosto de 2010

As Confederações Imperiais Nômades e os Ciclos de Poder na China

A origem e a organização do Estado.

A origem e a organização de Estados nômades na Ásia Central foi objeto de um considerável debate entre diversos estudiosos. Nesta primeira parte faremos uma pequena síntese das teorias que explicam o surgimento destes Estados e no item seguinte examinaremos alguns aspectos de suas relações com a China.


Ao estudar os casaques e os quirguizes no século XIX, o etnógrafo russo Wilhelm Radloff interpretou a organização política e a ascensão dos Estados nômades como uma transferência das políticas locais para níveis superiores. Diferenças de riqueza e poder dentro de pequenos grupos permitiram que certos homens clamassem por posições de liderança; desta maneira intervinham em conflitos dentro do grupo e organizava-o para sua defesa ou agressão contra inimigos externos. Para Radloff, a formação de grandes grupos organizados seriam tentativas de homens ambiciosos de adquirir um número cada vez maior de tribos sob seu controle. Este processo poderia criar um Império nômade, porém o etnógrafo afirmava que o poder do autocrata da estepe era puramente pessoal. Barthold modificou o modelo de Radloff, propondo que o líder nômade poderia ascender através de uma escolha popular associada à um movimento político originário do interior da sociedade nômade, como ocorreu na ascenção do Segundo Império Turco, no século VII. A escolha complementava a coerção, porque estes líderes atraíam seguidores por causa de seus sucessos na guerra e na pilhagem. Ambas as teorias caracterizavam os Estados nômades como organizações efêmeras, pois estas não sobreviveriam à morte do seu líder-fundador.


Outras teorias afirmavam que estes Estados destruíam as organizações tribais tradicionais, mesmo que no novo relacionamento ainda utilizasse a antiga terminologia tribal. Em seu estudo sobre os hunos, o húngaro Harmatta defendeu que o Estado nômade só surgiria num processo onde a base tribal da sociedade fosse primeiramente destruída e depois substituída por relações de classe. Harmatta queria provar que mudanças na ordem socioeconômica tornaram possível o aparecimento de líderes como Átila. O antropólogo Krader afirmou que os Estados nômades não poderiam existir sem relações de classe – produtores e não-produtores. Se estes Estados eram instáveis, isto se devia porque a base de recursos da estepe era muito reduzida.


Imagem: Fivela para cinto Xiongnu
Fonte: www.archeo.ru

Explicar a existência de Estados nômades era muito complicado para os marxistas, porque os povos das estepes não se encaixavam dentro dos estágios da evolução histórica marxista, e quando estes Estados entravam em colapso, os nômades retomavam suas organizações tribais tradicionais. Diversos artigos soviéticos lidavam com este problema ao debater o conceito de “feudalismo nômade”, originalmente proposto por Vladimirtsov, em sua análise dos mongóis. Esta forma de “feudalismo” baseava-se na ideia de que as classes sociais - e consequentemente a luta de classes - existiam dentro da sociedade nômade, e a origem destas estava relacionada com a propriedade do pasto. Outros estudiosos soviéticos afirmavam que a posse de animais era o fator determinante para a divisão das classes e não a da terra.


Tanto a teoria da divisão de classes, como a da acumulação de poder por líderes carismáticos defendiam que a ascensão de um Estado nômade era produto de um desenvolvimento interno. Radloff e Barthold diziam que os Estados nômades eram efêmeros, mas, como sabemos, muitos deles sobreviveram aos seus fundadores: como os xiongnu, os turcos, os uigures e os mongóis.


Um ponto de vista alternativo surgiu através de comparações entre as formas de organizações políticas dos pastores nômades da África e da Ásia. Burnham concluiu que o desenvolvimento de um Estado entre pastores nômades não se dava por causa de suas necessidades internas, mas por razões externas. Os nômades não copiaram o Estado de povos sedentários, mas foram forçados a desenvolver sua forma peculiar de Estado para conseguir se relacionar com os Estados sendentários, que eram maiores e mais organizados. Essas relações requeriam um nível maior de organização política; os principais Estados nômades emergiram como uma forma das tribos encararem a China, o maior, o mais centralizado e tradicional Estado sedentário.


Khazanov argumentou que os Estados nômades eram produtos do relacionamento assimétrico entre sociedades nômades e sedentárias - em benefício dos nômades. Tais relacionamentos eram criados pelos povos nômades ao conquistarem áreas sedentárias, nestas ocasiões tornavam-se a elite de uma sociedade mista - composta por nômades e sedentários. Entretanto, muitos Estados nômades estabeleceram e mantiveram essas relações assimétricas sem conquistarem regiões sedentárias. Os nômades tiravam vantagem do seu poderio militar: exigiam subsídios dos Estados vizinhos, taxavam e controlavam o comércio, sem deixar de viver no seu seguro refúgio, a estepe.


Segundo Barfield, foi o relacionamento entre a China e a estepe que criou a necessidade de existência de uma organização política hierárquica entre os nômades. Os Estados nômades mantiveram-se através da exploração da economia chinesa e não pela exploração de sua própria economia pastoril.


Os Estados nômades da Ásia Central eram organizados como “Confederações Imperiais”: tratava-se de um Estado autocrata em sua política externa, mas consultativo internamente. Eram organizados em uma hierarquia administrativa formada por pelo menos três níveis: o líder imperial e sua corte, os governadores imperiais, e os líderes tribais. Durante a organização do poder local, a estrutura tribal permanecia intacta, sob o comando de chefes, cujo poder derivava do suporte popular e não do apontamento imperial. A estrutura estatal modificou muito pouco a organização tribal, exceto por assegurar o fim das pilhagens e assassinatos edêmicos que eram o principal obstáculo para a união dos "povos da estepe". As tribos ligavam-se ao Estado através de sua subserviência aos governadores, geralmente membros da linhagem imperial. O governo imperial monopolizava a guerra e a política externa, entretanto interfiria muito pouco em questões tribais locais.


A estabilidade desta estrutura era garantida através de recursos vindos de fora da estepe. Razias, direitos comerciais e subsídios eram obtidos pelos nômades através do seu governo imperial. Se os líderes locais perdiam autonomia, em troca, recebiam benefícios materiais do sistema imperial, que dificilmente uma tribo conseguiria obter agindo individualmente. Quando o sistema entrava em colapso e os líderes tribais tornavam-se autonômos, a estepe retornava à sua organização tribal original.


Ciclos de poder.


A Confederação Imperial era a forma mais estável de Estado nômade, primeiramente organizada pelos Xiongnu, entre 200 a.C e 150 d.C., este modelo foi adotado posteriormente pelos Rouran (século V), Turcos e Uigures (séculos VI-IX), Oirats, Mongóis Orientais e os Zunghars (séculos XV-XVIII). O Império Mongol de Chinggis Khan (séculos XIII-XIV) era baseado em uma organização mais centralizada do que as confederações imperiais anteriores, seu Estado descontruiu as relações tribais pré-existentes, desta forma era o próprio Khan que escolhia todos os líderes locais.


Imagem: Brincos Xiongnu
Fonte: http://deps.washington.edu/

As confederações de tribos nômades existiram apenas em períodos onde era possível sua ligação com a economia chinesa, ou seja, seu surgimento geralmente ocorria quando havia um poder forte e centralizado na China. Os nômades aplicavam uma estratégia de extorção para ganhar direitos comerciais e subsídios da China; e era através desta estratégia que estes Estados nômades conseguiriam se manter. A burocracia chinesa preferia conceder privilégios aos nômades, porque era mais barato do que a guerra, pois estes povos escondiam -se com facilidade na estepe, tornando as expedições punitivas ou de conquista chinesas extremamente caras.


Muitas pessoas imaginam que os nômades ficavam esperando atrás da Grande Muralha por um momento de fraqueza da China, para enfim conquistá-la; na verdade os nômades geralmente não queriam conquistar os territórios chineses, mas sim manter a sua fonte de comércio e subsídios. Os uigures, por exemplo, eram tão dependentes destas rendas que chegaram a enviar tropas para conter rebeliões dentro da China. Com excessão dos mongóis, a “conquista nômade” ocorreu apenas depois do colapso da autoridade central chinesa - ou seja, durante o declínio das dinastias na China. Poderosos impérios nômades surgiram juntamente com a ascensão de diversas dinastias chinesas. Os Impérios Han e Xiongnu surgiram dentro de uma década de diferença, enquanto os Turcos emergiram durante a reunificação promovida pelos Sui/Tang. Quando a China encontrava-se em desordem e sua economia entrava em crise, não era mais possível manter a organização da confederação nômade e a estepe voltava a se dividir - situação que permanecia até a China unificar-se novamente.


A conquista da China por dinastias estrangeiras foi resultado do trabalho de povos manchús, que viviam na região do Rio Liao. O colapso político tanto na China, quanto na Ásia Central libertava estes povos. Diferentemente das tribos das estepes da Ásia Central, os manchús possuíam uma estrutura política igualitária e um íntimo contato com regiões sedentárias da Manchúria. Em tempos de desunião, formaram pequenos reinos que combinavam tradições tribais e chinesas, dentro da mesma administração.


O modelo cíclico, proposto por Wittfogel e Feng, caracterizou o relacionamento entre os chineses e os nômades da Ásia Central, este repetiu-se pelo menos três vezes num curso de 2000 anos. A primeira característica deste ciclo, como já vimos, era que a organização de confederações tribais ocorriam paralelamente à ascensão de uma dinastia chinesa que reunificasse o território chinês de forma duradoura e estável. Quando ocorria o colapso duplo na China e na estepe, este criava um ambiente instável, muitas dinastias surgiram durante estes períodos, porém possuíam uma organização política fraca e um tempo vida curto. As dinastias que possuíam um melhor modelo de organização política restauravam a ordem e conseguiam conquistar um imenso território. As dinastias nativas do sul (chinesas) e as dinastias estrangeiras do noroeste e do nordeste dividiam o domínio do território chinês entre si. Durante as guerras de reunificação, as dinastias estrangeiras eram destruídas e a China viria a ser unificada por alguma dinastia nativa - o que dava início à um novo ciclo. O tempo entre a queda da grande dinastia nativa e o re-estabelecimento da ordem sob um governo estrangeiro decrescia a cada ciclo – séculos de instabilidade seguiram o colapso do Império Han, décadas depois do Império Tang e um período muito curto após a queda dos Ming. A duração das dinastias nômades possuem um modelo similar – curto no primeiro ciclo e longo no terceiro.



Imagem: Cerâmica Xiongnu

Fonte: http://depts.washington.edu/

Segundo Barfield, Wittfogel e Feng não levaram em conta que com excessão dos Mongol Yuan, todas as dinastias conquistadoras eram de origem manchu. Também falharam em não perceber que os nômades da Mongólia estabeleceram impérios na estepe - com excessão dos mongóis que fundaram a dinastia Yuan - e os nômades da Manchúria estabeleceram dinastias dentro da China, mas nunca criaram poderosos impérios nas estepes.


A estepe mongol, o norte da China e a Manchúria devem ser analisadas como partes de um único sistema histórico. É possível perceber, ao analisar a imagem abaixo, como funcionava os ciclos dinásticos.


Imagem: Os ciclos dinásticos (neste quadro foi utilizado o sistema Wade-Giles).

Fonte: BARFIELD, Thomas J., The Perilous Frontier: Nomadic Empires and China, 221 BC to AD 1757 (Cambridge: Basil Blackwell Publisher, 1989).


Os Han e os Xiongnu tiveram sua ascensão e declinío quase que simultaneamente. Os Xiongnu perderam sua hegemonia na estepe, por volta de 150 d.C., quando foram substituídos pelos Xianbei, que mantiveram-se unidos até 180 d.C. Neste mesmo ano, uma grande rebelião estorou na China, e a Dinastia Han sobreviveu nominalmente apenas por mais vinte anos. É importante notar que não foram os nômades, mas sim os rebeldes chineses, que destruíram o Império Han. Nos 150 anos seguintes (grosso modo), enquanto os chefes militares chineses lutavam pela China, os manchús estabeleceram pequenos Estados no norte da China. O Estado Yen (Murong) parecia ser o mais organizado e estabeleceu o controle da região noroeste durante o século IV. Eles criaram uma organização política que foi adotada pelos Wei (Tuoba), que haviam derrotado os Yen e unificaram o norte da China. Foi somente com a unificação do norte da China que os nômades da Mongólia estabeleceram novamente um Estado centralizado sob a liderança da tribo Rouran. Entretanto, os Rouran nunca controlaram por inteiro a estepe, porque os Tuoba mantiveram muitas tropas na fronteira da Mongólia. Suas incursões foram de tal sucesso, que os Rouran foram incapazes de ameaçar a China até o final da dinastia, quando os Tuoba estavam tão sininizados que começaram a aplicar políticas utilizadas durante o período Han.


Uma rebelião interna derrubou os Wei, iniciando-se um período de reunificação da China sob as dinastias dos Wei Ocidentais e Sui - durante o século VI. Os Rouran foram derrotados por seus vassalos, os turcos, que eram tão temidos pelos chineses, que estes pagavam grandes subsídios em seda para garantir a paz. A fronteira voltou a ser bipolar e os turcos iniciaram uma política de extorção similar à praticada pelos Xiongnu. Durante a queda dos Sui e ascensão dos Tang, os turcos não tentaram conquistar a China, mas tomaram partido de alguns pretendentes chineses ao Mandato Celeste. Desta forma, a Dinastia Tang ficou dependente dos nômades para conter rebeliões domésticas, por exemplo, a ajuda dos uigures foi decisiva contra a Rebelião de An Lushan, em meados do século VIII. Depois dos uigures serem vítimas de um ataque quirguiz, em 840, a estepe central entrou em um período de anarquia. Os Tang declinaram pouco tempo depois, por causa de rebelião popular.


A queda dos Tang deu oportunidade para o desenvolvimento de Estados mistos na Manchúria. o mais importante deles foi o da Dinastia Liao, estabelecida pelos nômades khitans. Como o Estado Yen, séculos antes, os Liao empregaram uma administração mista para acomodar tanto a organização chinesa, quanto a tribal. Os Liao também foram vítimas de outro grupo da Manchúria, os Jurchen. Eles derrotaram os Liao, no início do século XII, e estabeleceram a Dinastia Jin, consquistando todo o norte da China e confinando os Song ao sul. Neste ponto, os primeiros dois ciclos possuem uma estrutura similar, mas a ascensão dos Mongóis criou um grande rompimento que causou profundas consequências não apenas para China, como para o mundo todo.


Nenhum Estado nômade havia emergido da Mongólia, durante os períodos em que o norte da China havia se separado por brigas entre senhores-da-guerra (do inglês, warlords) seguido pelo colapso de grandes dinastias nativas. O re-estabelecimento da ordem por dinastias estrangeiras da Manchúria solidificaram a fronteira, o que favorecia a criação de Estados centralizados nas estepes. Estas dinastias estrangeiras estavam cientes do perigo que a Mongólia representava, e para que essas tribos não se unissem, sua tática era colocar uma tribo contra outra através de jogos políticos. Aliada à estratégia de “dividir e governar”, estas dinastias conduziam grandes expedições punitivas que capturavam pessoas e animais da estepe; e mantinham um sistema de alianças, através de casamentos.

Apesar do sucesso de Chinggis Khan, o conquistador mongol enfrentou muitas dificuldades para unir a estepe contra os Jurchen – isto consumiu a maior parte de sua vida adulta e ele chegou perto de falhar em inúmeras ocasiões. Seu Estado era diferente de todos os outros: era muito centralizado e possuía um exército extremamente disciplinado. Como outros unificadores nômades, o objetivo de Chinggis era inicialmente extorquir a China, e não conquistá-la. Entretanto a corte Jurchen (já muito "achinesada") rejeitou uma conciliação e recusou a quebrar seu acordo com os mongóis. As guerras das próximas três décadas destruiram o norte da China e deixou os mongóis em vantagem. Sua falta de interesse e preparação para governar a China foi refletida pelo fato de não conseguir estabelecer uma administração regular antes do reinado de Khubilai Kahn, o neto de Chinggis.


Imagem: Um jovem nobre do período Yuan, por Qian Xuan
Fonte: www.art-virtue.com

A vitória de Chinggis Khan demonstrou que o modelo de Barfield é probabilístico e não determinista. Sempre existiram líderes tribais como Chinggis Khan nos tempos de desordem, mas suas chances de unificar a estepe frente aos Estados Manchús, estabelecidos na China, eram poucas. Enquanto os Rouran foram incapazes, os Turcos foram mais talentosos, mas por causa de sua habilidade em explorar os novos Estados chineses, que pagavam muito bem para que não fossem incomodados, não possuíam interesse pela conquista. Chinggis superou sua desvantagem – já que os jurchen eram podereosos e os mongóis eram uma das tribos mais fracas da estepe. Este encontro entre um poderoso Estado nômade e uma poderosa dinastia estrangeira foi único e altamente destrutivo. Os mongóis organizaram ataques cruéis com o objetivo de induzir uma paz lucrativa, mas falharam porque os jurchen rejeitaram um acordo, o que fez com que os mongóis aumentassem sua pressão até que a vítima fosse aniquilada.


Os Mongóis foram os únicos nômades da estepe central que conquistaram a China. Durante o período Ming alguns impérios surgiram, como os Oirats e mais tarde os Mongóis Orientais, mas trataram-se de Estados instáveis. Com a memória da invasão Mongol ainda viva, os Ming ignoraram as políticas Han e Tang e adotaram a política do não-relacionamento - os nômades responderam atacando a fronteira. Quando finalmente os Ming mudaram sua política, os grandes ataques acabaram e a fronteira estava segura novamente. Depois dos Ming enfrentarem rebeldes chineses, durante o século XVII, foram os manchús, e não os mongóis, que conquistaram a China e estabeleceram a Dinastia Qing. Como os antigos governantes manchús, os Qing empregaram uma estrutura administrativa mista e de forma eficiente evitaram as tentativas de unificação da estepe, cooptando líderes mongóis e dividindo suas tribos em pequenas unidades sob domínio manchú. O ciclo do tradicional relacionamento entre China e Ásia Central chegou ao fim com os armamentos e sistemas de transportes modernos, e o novo contexto internacional, que abalou a ordem sinocêntrica.


Bibliografia:

  • BARFIELD, Thomas J., The Perilous Frontier: Nomadic Empires and China, 221 BC to AD 1757 (Cambridge: Basil Blackwell Publisher, 1989).
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